Notre “drame” de Paris

Segundo o dicionário Larousse, um dos mais conceituados da língua francesa, tragédia é um evento funesto, terrível. Mesmo aqueles em quem não foi despertada nenhuma empatia por ver destruída uma parte considerável da história – não somente de um país, mas da humanidade -, não podem negar : o incêndio da Notre-Dame de Paris foi terrível. Assim como a desaparição em chamas do Museu Nacional do Rio de Janeiro, não faz muito tempo. Ou a funesta destruição, pelas mãos do exército Talibã, das estátuas de Buda, em Bamiyan, no Afeganistão, no início deste século.

Tudo isso e tantos outros episódios despertam lágrimas e comoção mundo afora. Guerra, genocídio, tortura, fome, terrorismo – como o mais recente no Sri Lanka – etc também entram na lista trágica. E também nos comovem. Para alguns, inclusive, causa a catarse, que vem do grego e significa sentimentos de terror ou de piedade expurgados pela contemplação ou vivência do espetáculo trágico.

Partindo da definição “larousseniana”, portanto e espero qté aqui não ter ficado dúvida, o incêndio na icônica igreja parisiense seria uma tragédia. Já a repercussão sucessiva ao evento pode ter outro significado. Apostaria em “drame” (drama em francês), definido pelo Larousse como evento trágicos ao qual se atribui importância ou severidade excessiva.

Drama é mais na superfície. É quando, por exemplo, um certos bilionários doam dinheiro para ajudar a reconstruir um patrimônio posando de benevolente, mas no fundo vão ter vantagens tributárias que, no fim das contas, vai afetar diretamente o bolso do contribuinte médio.

Ou quando um presidente da república vai às lágrimas diante das câmeras de TV e clama pela ajuda financeira de todo o povo de seu país, por causa de um monumento turístico que traz muito dinheiro para os cofres de seu governo. Mas esse mesmo presidente cortou as verbas para preservação do patrimônio histórico.

Como mostra uma matéria de um jornal (*) considerado de direita e apoiador do atual governo, os fundos destinados ao patrimônio representam 3% do orçamento total do Ministério da Cultura, o que representa apenas 2,1% do orçamento do Estado em 2019. Situação que não permite a manutenção dos monumentos, igrejas e obras de arte que são, no entanto, um bem inestimável para o país, pois atraem turismo cultural e geram receita.

Portanto, não passa de drama o posicionamento do chefe de estado, co-responsável pelo incêndio na catedral da capital de seu país ao não destinar verbas para sua manutenção e preservação. Não se iludam : até este momento só estou falando da França.

Mas do outro lado do Atlântico, não é que a indefesa catedral de quase 900 séculos também foi pivô de dramas? Ou teria qual nome o fato de se incomodar com as fotos que o povo tirou do bolso e publicou em suas redes sociais para homenagear o sagrado prédio em chamas?

O mundo inteiro fez isso. Mas só a classe média brasileira é cafona e queria aparecer. Ahã. Mas nem ficou somente por aí. Depois veio a enxurrada de mau-humor de quem acha ter o direito de dar opinião sobre o que fazer com o dinheiro alheio.

Vieram em brados frases do tipo: “Joguem à fogueira os milionários brasileiros!” “Cambada de insensíveis que não doaram nada para o Museu Nacional!” “Aprendam com milionários que doaram para Notre-Dame!” “Mas não aprendam muito, pois eles não doaram para Moçambique!” “Agora quero ver quem vai doar para o Sri Lanka!”

Drama e julgamento. Não há outras palavras. As pessoa desconhecem a história até da igreja quase milenar que ardeu em chamas, quem dirá a trajetória de vida dos doadores. Quem dirá as questões políticas envolvendo as doações. Mas estamos no reino do “Eu quero dar minha opinião”. Mesmo infundada, temos todos direito.

Não contesto o direito de ninguém de exprimir seus pensamentos. Mesmo os superficiais e preconceituosos, afinal, deixemos as quimeras mostrarem suas cabeças. Acontece que eu tenho muito apreço à responsabilidade na difusão de opinião e informação. Deformidade profissional, eu diria.

Nesse caso, tive vontade e poderia dar uma série de exemplos intermináveis sobre o festival de “não é o que não pode ser. E não é o que não pode ser, que não é o que não pode ser, que não é”, como diz uma velha canção do Titãs.

Mas ninguém precisa de mim para isso. As informações estão aí. Seja sobre a história de Notre-Dame, seja sobre as questões de destinação de dinheiro. Seja sobre a milionária brasileira que doou alguns de seus milhões de euros para Notre-Dame.

A gaúcha de muitos bilhões em sua conta bancária foi queimada pela inquisição dos analistas da superficialidade. Como eu não gosto de injustiças, pesquisei e vi um artigo em um jornal brasileiro (**) no qual se esclarece que pouco se vê de notícias sobre Lily Safra no Brasil, mas, entre outras ações filantrópicas, ela banca um instituto de pesquisa em Natal e o tratamento de esgoto de uma pequena cidade no interior da Bahia, além de ONGs e de destinar verba a pesquisas em neurociência.

Judia, rica e com uma ligação emocional com a França, doou dinheiro para a reconstrução de uma igreja católica. Acredito que ela não pague impostos na França, portanto, nem será beneficiada do descontinho camarada de IR no país de Joana d’Arc.

Eu sei. A crônica de hoje está amarga como chicória na salada de segunda-feira e não tenho a pretensão de fazer ninguém concordar ou discordar. Apenas dei informações, checadas, na intenção de tentar corrigir certas injustiças ou somente levar à reflexão. E minhas armas são apenas as palavras. E como Nossa Senhora é no feminino, não resisto e termino por aqui apelando por uma maior preservação das damas e menor propagação dos dramas, por favor.

(*) “Le Figaro”

(**) “Jornal Extra”

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