Quem mora longe

Domingo é dia de fazer a feira. Mercado de rua cheio de cheiros, cores e sons. Provas de frutas ali, um quitute acolá, enquanto o carrinho vai se enchendo de maçãs e aspargos, vegetais e flores da semana o pensamento vagueia. É tão legal estar em Paris num domingo de primavera. Ah! O peixe fresco na barraca de confiança não pode faltar. Um pedaço de carne no moço que fala português também não. 

Vêm os pensamentos de novo: tirando o pastel com água de coco ou caldo de cana, ritual de lei em qualquer feira carioca, praticamente nada é tão diferente por aqui.

Distraída, olhando a promoção de três caixas de morango a seis euros, lembro que está faltando arroz em casa. Hum. Vou ter que entrar no Monoprix, um supermercado caro e metido à besta, mas onde costumo ir para “ver as modas”, como dizia minha avó. E que fica aberto aos domingos.

Meio atabalhoada com o carrinho e algumas sacolas da feira, consigo subir uma escada rolante que me leva até a parte onde ficam os alimentos. Andando entre as gôndolas, carregada de compras e tentando me desviar das pessoas (todo mundo faz compras aos domingos, gente!) meus ouvidos começam a se atiçar.

É interessante esse processo cerebral que leva do estímulo ao ato de decifrar a informação. Em segundos,  recebo primeiro o alerta de algo conhecido, depois a tentativa de saber de onde vem, para, finalmente, me render e constatar. “Eu estou escutando a voz do Zeca Pagodinho”.

Sim, senhores, o sistema de música ambiente está tocando uma canção tão familiar que chega a dar nervoso. Olho ao redor para ver a reação das pessoas. Claro, estão todas no automático, entre a escolha de  suas mercadorias ou a espera nas filas dos caixas. 

Minha vontade era dizer para a senhora ao lado: “Oi, está escutando essa música ? É brasileira! Quer que eu traduza?” Mas a cara de quem está atrasada para preparar o almoço da família me demove do ímpeto. 

Me vejo parada, em frente às 15 diferentes marcas de arroz disponíveis na prateleira. A música toma conta e viajo até uma cozinha no Méier, de onde saia um arroz vermelhinho, refogado no tomate, alho e óleo, da minha avó. Tão presente em tantos domingos de uma velha infância. Ou do macarrão integral com brócolis da minha mãe. Ou mesmo do meu frango com creme de catupiry e batatinha palha, que costumava preparar para mim ou para os companheiros de amor com quem casei ou vivi ao longo de mais histórias  em meu país de origem.

Agora tem uma mulher cantando a música com o Zeca. Ah, é a Dona Ivone Lara! Com sua voz inconfundível ela mando nos versos : “Vai buscar quem mora longe, sonho meu”

Os olhos enchem-se d’água. E as lembranças, como diz a canção inesperada no supermercado francês, “fazem a dança das flores no meu pensamento”.

O grande sonho meu sempre foi morar em Paris, mas nem por isso ele deixa de clamar por quem mora longe. Seja o morar das reminiscências. Seja o morar real de quem ficou por onde eu já não ando mais.

Olho para a mulher com cara de poucos amigos, com quem desisti de tentar puxar assunto. Ela resmunga. Eu rio e me vem à mente a certeza: por mais que o sonho da gente tenha se realizado, só somos felizes de verdade quando ainda sentimos, vez ou outra, aquela vontade de buscar quem mora longe… e nome disso é só saudade. 

Pego o arroz, pago e volto para a a realidade de hoje, feliz em relembrar que um dia ela já foi sonho. 

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5 comentários

  1. Muito boa a crônica, me levou para o mercado e a feira…fez eu viajar ..

  2. Linda crônica! Aqui no Brasi ltambém senti vontade de “buscar quem mora longe”. Beijo no seu coração, amiga!

  3. Bom dia! Amei sua crônica! Deus para nós passar com exatidão essa dualidade de desejos que a gente muitas vezes sente: realizar nossos sonhos,mas não esquecer nossas raízes…Ao ler o seu texto, me imaginei dentro desse supermercado ( metido à besta,rs), é os franceses apressados a comprar seus alimentos para o almoço de domingo!
    Imagino a saudade do Brasil( ao ouvir Zeca Pagodinho)…
    Um abraço,
    Alcyone Torres

  4. É a segunda crônica que leio e me encanta. O jeito leve e coloquial da narrativa toca minhas emoções. As palavras revelam rotinas , culturas, escolhas , sentimentos. Por momentos nos transportamos p aquela atmosfera parisiense e ou europeia… Bate certa nostalgia mas é uma emoção boa com a sensação das lembranças q afloram por termos experimentado também algo parecido . Terei prazer na continuidade da partilha das crônicas.