O sentido da vida

Estava eu parada na Place de la République, acompanhando uma manifestação democrática e tranquila contra um determinado candidato a presidente da República Federativa do Brasil, quando aproxima-se de mim uma moça com uma bandeira da extinta União Soviética enrolada no pescoço.

Ao mesmo tempo, outra aparece e me oferece um panfleto com uma foto de outro icônico político brasileiro, por quem já fiz muita campanha e dei muitos votos, mas pelo qual atualmente não nutro qualquer simpatia, principalmente por considerá-lo um tanto arrogante por não reconhecer os erros de seu partido.
– Não obrigada – digo com um sorriso. Ao seu olhar de espanto, respondo:
– O fato de ser contra um não quer dizer ser a favor do outro.

Pronto. Foi o suficiente para a moça ser bem malcriada e me dizer, em tom de desdém e deboche, e com bastante agressividade:

– Um dia a história deixará de ser escrita pelos golpistas e a verdade será contada.

Eu não sei quais historiadores a moça refere-se como fontes. Mas posso afirmar que fui educada em uma escola pública na época da ditadura militar e, por sorte, tinha uma família cuja matriarca pertenceu ao Partido Comunista Brasileiro, chegando a se candidatar como vereadora. O senso crítico em casa me levou à compreensão de que nem tudo que precisava saber seria ensinado na escola.

Para contestar a chamada “história oficial”, da época onde não havia democracia, aprendi que história do Brasil estava mais em livros de Gilberto Freyre, Roberto Da Matta, Darcy Ribeiro e Celso Furtado do que nos exemplares do “Vamos Construir Juntos” (pesquisa no Google se você tem menos de 40 anos). Sem esses autores, corria-se o risco de adotar a ficção como realidade.

Divagando sobre essa questão, fiquei com vontade de perguntar à moça se esses quatro nomes citados ela considerava “golpistas”. Mas calei-me diante da presunção da militante.

Alguns minutos depois, passa um senhor. Difícil supor a idade, mas arrisco dizer que teria mais de 80 anos. Ele me pergunta, em francês, o que quer dizer “ele não”. Explico e, para tentar fazer uma analogia, comparo o político brasileiro com Marine Le Pen, a candidata a presidente derrotada nas últimas eleições francesas. Pronto. Foi o suficiente para ouvir:

– Marine Le Pen não é extrema-direita, ela é uma democrata. Pior é a extrema-esquerda. Sou polonês, essas pessoas com bandeira de foice e martelo não sabem o horror que foi o comunismo. Marine Le Pen quer evitar que a França vire a Venezuela.

Resignei-me. Não digo que a moça agressiva não tenha suas razões em considerar injusta a prisão do tal político, nem sou idiota para dizer que o comunismo implantado na chamada Cortina de Ferro europeia ou em Cuba foi um mar de rosas ou um sistema político democrata, que matava ou perseguia os oponentes para proteger o bem-estar da população

Eu só não entendo uma coisa: como pode em pleno século XXI pessoas defenderem ditaduras? Sejam elas de esquerda ou de direita. Ao mesmo tempo reflito: talvez não sejamos desapegados o suficiente para gostarmos de democracia. Aceitarmos a escolha da maioria exige abnegação. Principalmente caso essa escolha seja diferente da nossa preferência. Ou seja, democracia exige maturidade e amor ao próximo. Sem isso, não sairemos nunca de golpes, impeachments ou insistências em “salvadores da pátria”.

Conjecturava sobre esses temas quando abri as redes sociais para publicar minha crônica de domingo que, originalmente, nada tinha a ver com esse tema. Aí vejo um comentário num Twitter de alguém que compartilhava a cobertura de um grande jornal sobre as manifestações contra o extremismo do último sábado mundo afora. O sujeito chamava a empresa de comunicação em questão de comunista.

Veio o insight: precisei viver até quase 50 anos para ver as Organizações Globo serem chamadas de “comunista”. Agora a vida faz sentido. Pois se a Globo é comunista, Adam Smith é Karl Marx.

Os temas e argumentações estapafúrdias emergentes em tempos de eleição só me fazem lembrar de Sérgio Porto, que com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, nos legou a deliciosa obra Febeapá – Festival de Besteiras que Assola o País.

Mas atualmente, morando longe do meu chão, diria que o festival de besteiras assola os países, assim no plural. Afinal, ignorância, arrogância, intolerância,  falta de abertura para o diálogo e ausência de senso de coletividade não são características exclusivas de um único povo.

As pessoas não discutem mais ideias, defendem territórios. E a resposta ao sentido da vida para quem busca o conhecimento  parece cada mais próxima do aforismo socrático:  saber que nada sabemos.

E já que apelar à humanidade está difícil neste momento, rogo aos deuses – caso eles existam- que ao menos iluminem as urnas. Perdoai, Divindade, as foices, os martelos ou as logos da CBF. Dizei sim à democracia e, a ele, não. E caso o retrocesso vença, que continuemos a ter o direito de poder esperar quatro anos para decidir, no voto, o que queremos.

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1 comentário

  1. Ana Paula,
    Vivemos tempos de polaridades. Do tipo, se não está comigo está contra mim. E o fenômeno das mídias sociais só fez crescer essa intolerância.
    Por aqui, você deve saber, está muito sério! Na verdade, vergonhoso.
    Os debates são verdadeiros circos de horrores, com personagens prontos para atuar neles, caso não se elejam.
    E ainda há os que acreditem em milagres econômicos e reprises de “dias melhores”, desconsiderando os custos que esses dias tiveram e a impossibilidade quase que completa de se reverter o quadro sem um custo ainda maior.
    Triste de ver.
    #dia07/10sim!