Eu não acredito em reencarnação pura e simples. Não acho que morramos e vamos para um lugar tipo uma sala de espera de repartição pública, onde São Pedro, ou o Capeta, vá nos chamar por uma senha qualquer e desenvolver conosco um planejamento estratégico para a próxima vida. Mas confesso ter uma certa obsessão pelo tema.
Caso seja verdade, até me parece justo esse negócio de a vida ser um caminho de expiações e ser mandatória a lei do retorno. Como defendem certas vertentes religiosas, a colher as semenstes plantadas, nessa ou em outra existência, explicaria facilmente esse mundo de cabeça para baixo.
O problema é a incredulidade, marca recorrente das costas de quem sente na pele a desigualdade. No meu caso, pois até estou na lista dos privilegiados diante de um mundo tão desigual, minha preocupação é uma só: quem serão os juízes a decidirem o que fazer com as almas?
É porque, como brasileira, acrediar na justica – seja a dos homens ou divina – é algo um tanto quanto probelmático… Como não posso simplesmente “dar uma morrida” só para ver como é e depois voltar, deixo à minha fértil imaginação de aspirante a escritora a missão de tentar saber como seria…
– Alma número 31031970! – grita o funcionário do purgatório.
Levantam duas pessoas. Elas se olham. Aquela alma mal saída de um corpo ainda em velório puxa assunto com o companheiro, com cara de espectro desencarnado há tempos:
– Você também nasceu no dia 31 de março de 1970?
– Não, eu morri nesta data. Numa manifestação contra o governo.
– Nossa! E está até agora aqui????”.
– Eu não aceitei as condições de reencarnação e me botaram de castigo.
– O que propuseram?
– Queriam que eu voltasse em Cuba. Não é justo! Um monte dos meus colegas que defendiam as mesmas ideias que eu foram parar em Londres ou Paris. E eu morri, caramba! Merecia voltar na Suécia!
A autoridade interrompe:
– Vocês dois aí podem parar de conversar? Aqui é lugar de silêncio. E o senhor – vira-se para a alma rebelde – já cansei de avisar que não adianta tentar subverter a ordem. Você foi para o fim da fila de prioridade. Eu olho para meu novo amigo etéreo com consternação e desejo-lhe boa sorte. Ele ainda grita para a entidade com cara de patrão:
– Vou encher teu saco até você me apresentar a alma do Karl!
A autoridade dá um suspiro, olhos para cima, cara de quem já não tem a menor paciência:
– Quantas vezes precisarei repetir: esse não veio para cá! Está no concorrente.
Com seu tablet na mão, o chefe vira-se para a alma recém desencarnada:
– A senhora me acompanhe, por favor.
Chego na sala e faço a pergunta
– Desculpa, moço, mas o senhor é de qual lado da força?
A autoridade anímica parece espantada e incrédula.
– A vossa total falta de percepção não facilita as coisas. Mostra o quanto ainda precisas evoluir…
– Entendo, mas o senhor acha mesmo que me colocando numa sala de espera, sem direito a falar com ninguém eu vou evoluir?
– Contestadorazinha a madame, hein?
– Tava como jornalista na última existência …
– Ahhhhhhh logo vi…
– O senhor também não gosta de jornalista, pelo visto.
– A mídia golpista só sabe me difamar. Sem provas da minha existência, usa meu nome em vão. Me atribuem vontades que eu jamais manifestei. Me culpam de toda ordem de absurdos…
O discurso só aumentava minhas dúvidas sobre se estava em frente ao chefe do portal do céu ou do anjo expulso do paraíso. Resolvo ousar:
– Tenho uma proposta: o senhor me dá uma entrevista exclusiva, eu volto como jornalista e esclareço de vez quem és!
De cabeça baixa e fazendo umas anotações, ele resmunga:
– E ainda quer voltar como jornalista, tem louco pra tudo nessa morte…
– Quero continuar a poder contestar – respondo com uma piscadinha
A autoridade lhe olha seriamente:
– É bom que saibas não estar em meus planos fazê-la reencarnar em Paris. Mas posso colocá-la como jornalista na Coreia do Norte, caso desejes mesmo continuar nessa profissão. Aqui no sistema a proposta é para a vaga de um futuro militar. Nascerá em poucos meses. Parece que não aprendeste bem a obedecer hierarquia…
– Não vai dar certo. Só se eu for direto como general..
– Engraçadinha. Mandar sabes bem, não é? Fazer piada sem graça também.
– Obrigada pelo elogio.
Com uma cara de quem não entendeu a ironia, continua:
– Bem, tem outra possibilidade aqui. Me parece muito confortável para uma alma insolente como a da senhora, mas afinal, como existe uma habilidade nem um pouco desenvolvida na última encarnação é preciso dar um jeito nisso. Não vai ser fácil mas…
– O que foi que eu não aprendi?
– A ficar de boca fechada.
O chefe de estado das almas perdidas faz uma cara de sádico, abre um sorriso e manda a sentença:
– Serás rainha da Inglaterra!!!
– Não, por favor não!
– Vais aprender na marra o lema mais importante da vida: diante de uma polêmica, sorria e acene.