Florescer

Uma amiga, mais que amiga e sim uma verdadeira porta de entrada em Paris, deixou a cidade para morar no Porto. No espólio, ganhei uma planta e umas recomendações:

– Coloca num lugar arejado, mas onde não bata sol. Isso parece só um cabinho verde, mas é uma amarílis. Vai florescer lá para outubro – disse-me a amiga.

Trago a planta e outros objetos de herança para casa. Ainda tinha a orientação de jamais molhar as folhas.

– Rega somente na terra ao redor. Toma cuidado para jamais molhar as folhas – enfatizou a menina do dedo verde que deixava Paris.

Confesso que trouxe a planta para casa meio tensa. Me senti como se tivesse um bebê humano ou um filhotinho de gato. Meio insegura e ainda sem jeito, arrumei um canto na varanda onde não bate sol. Pousei o vaso ali. Olhei para aquela folha verde espetada na terra, parecendo uma pena em cocar de índio, e disse:

– Olha, fica tranquila. Vou cuidar de você, tá?

Falei aquilo mais para convencer a mim mesma. Pouco acostumada a cuidar de jardim – até então, só me atrevera a ter um cactus e umas flores típicas locais, que precisam de muito pouca água – passei a cumprir um ritual que nem eu acreditava.

Em meio à vida corrida, me vi molhando a plantinha todo dia logo ao acordar. Eu bebia meu copo d’água matinal, enquanto regava a nova companheira. Como normalmente acordo feliz (sou daquelas bem-humoradas por vezes irritantes pela manhã) e com vontade de contar meus sonhos, aproveitava para bater um papo com o novo ser vivo habitante do mesmo teto.

– Bom dia! Ou melhor, bonjour! Não sei se falo contigo em francês ou português. Como prefere? Em francês você vai me entender, mas será que você não gostaria de aprender uma nova língua?

Depois ria de mim e mergulhava na rotina. Nos dias trabalhado em casa, batia um papo também na hora do almoço. Teve uma vez que o sol castigou Paris e o cantinho onde a flor prometida para outubro ficava estava quase recebendo os raios solares. Peguei um guarda-chuva e proporcionei uma sombrinha generosa à nova amiguinha.

Passados dois meses, percebi que aquela folha solitária tinha crescido e gerado mais umas cinco folhas. Elogiei.

– Nossa, como você está crescendo rápido. Quando chegar em outubro, vou ter que mudar você para um vaso maior…

Na semana passada, parti em viagem. Fiquei uma semana em Londres e esqueci de recomendar à amiga que ficou com a chave de molhar as plantas. Cheguei em casa preocupada, mas olhei para a amarílis e quase caí dura no chão. Uma flor frondosa e dois botões em vias de desabrochar me esperavam.

Sentei em frente à planta e só conseguia dizer “Obrigada. Obrigada. Obrigada”. Tirei uma foto e enviei para a amiga que me ofereceu o presente. Como sou de reflexões, impossível não fazer uma analogia com a vida. Entrei em Paris há cerca de três anos, sem saber direito qual rumo minha história tomaria.

Morei um mês na casa de desconhecidos. Dois deles viraram amigos de toda a vida, pois foram mãos generosas a me conduzirem nos primeiros passos. Sem saber falar a língua, sem saber sequer me locomover na nova cidade, fez toda a diferença ser bem acolhida.

O primeiro amigo da república onde morei partiu para a Colômbia uma ano depois. Ele me deixou o primeiro livro em francês, que somente agora consegui ler sem parar a cada linha para consultar o dicionário.

Dois anos se passaram e lá se foi a outra amiga da porta de entrada. Partiu para Portugal me deixando amor, saudade e uma bela planta que floresceu antes do tempo.

Porque se o tempo é o senhor da razão, a natureza é a senhora da emoção. Tudo floresce no momento certo, e não através de medidas lógicas com as quais muitos de nós insistimos em controlar nosso percurso.

Cheguei a Paris e recebi de cara amor, água e alimentos. E muitos dedos de prosa, para dar um tempero de ervas-finas à jornada. Com isso, acredito que o instinto natural de sobrevivência tenha ganhado força. Ter sido bem recebida me protegeu do sol que castiga, das intempéries que nos afastam dos sonhos, das tristezas que rondam a existência.

Botar as pétalas para fora e encantar o mundo é tão bonito. Em Paris ou em qualquer lugar do imenso Universo.

Talvez, em uma proporção bem menor, claro, eu tenha retribuído à minha amarílis todas as boas-vindas recebidas ao optar por tamamha mudança de vida. E ela me mostrou que não precisamos esperar a estação certa. Primavera ou outono, inverno ou verão, pouco importa. Enquando estivermos vivos e formos bem-vindos, sempre será tempo de florescer.

 

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2 comentários

  1. “Porque se o tempo é o senhor da razão, a natureza é a senhora da emoção. Tudo floresce no momento certo, e não através de medidas lógicas com as quais muitos de nós insistimos em controlar nosso percurso.” Que beleza de reflexão. Que texto poético…Lindo repensar sobre o que sentimos e vivemos, colhendo sempre o que de melhor plantamos…Um brinde à vida e às flores…