O céu e o piano

Entro no táxi meio estabanada, com quatro bolsas, cheias do espólio de uma amiga em mudança para Portugal. O céu em Paris está azul como eu nunca vi por aqui. Nenhuma nuvem sobre nós nesta sexta-feira espremida entre um feriado e um fim de semana.

Todos os parisienses estão na rua, tenho a impressão.

O motorista, de origem africana, veste uma camisa polo verde. Tem um brinco de pedra brilhante em cada orelha. É um homem bonito. Ele me dá um bonjour sorridente e pergunta se a música, um pouco alta para os padrões locais, me incomodava. A música é clássica, com piano em destaque.

Antes de lhe responder, faço uma viagem no tempo. Estou na rua Frei Fabiano, no subúrbio carioca do Engenho Novo. Devia ter uns 7 anos e acompanhava minha irmã em sua aula de piano, na casa da Dona Dulce. Minha família não tinha recursos para as duas aprenderem, mas a doce senhora pianista e acordeonista, uma música profissional aposentada, permitiu minha presença nas aulas.

Eu ficava quietinha, apenas olhando. Como eu gostaria de ter aprendido piano! Por vezes eu fazia uma visita ao atelier do marido da professora de piano, no terraço da imensa casa. Ele, um pintor com quem aprendi o que é natureza morta, me deixava rabiscar umas telas com pincel e tinta. Na rotina da velha infância, ir àquela casa de artistas era como uma visita a um centro cultural.

Todo final de aula, minha irmã tocava uma pequena musiquinha, de notas bem fáceis. E eu me aproximava do piano. Dona Dulce deixava eu dedilhar as teclas e chegou a me ensinar a tocar “Cai, cai balão”. Agora já esqueci. Nunca mais treinei.

Retorno dos meus devaneios e respondo ao condutor. “Não, não me incomoda de forma alguma. Ao contrário, é uma bela música para acompanhar um belo dia como esse”. O motorista sorri e diz “Sim! Debussy vai muito bem com o céu azul”.

Eu não tinha ideia de que se tratava de Debussy. O motorista me conta que gosta daquela rádio, sempre toca música clássica. Eu lhe digo que conheço pouco. Mas entre os meus músicos clássicos conhecidos, aprecio Chopin e Tchaikovsky. Ele diz amar Ravel.

O carro para em um dessa ruas estreitas. Deparamos com um pequeno engarrafamento inesperado. O motivo, por uma dessas coincidências da vida, era um caminhão de mudança e um piano subindo para entrar por uma janela.

Esta cena é relativamente comum em Paris. Especialmente ali, no 7ème arrondissement, um bairro de gente rica e cujos prédios antigos, com suas escadas em caracol e elevadores minúsculos, não permitem a entrada de um piano de outra forma que não seja pela janela.

Mas não resisto a pensar em Dona Dulce, cuja energia já passou para outra dimensão. Se não me engano, Dulce quer dizer doce em espanhol. E como não enxergar doçura naquele piano subindo, através de uma espécie de guindaste, até o quarto andar de um prédio haussmaniano? Aquela cena era como a calda quente de uma sobremesa: tornou o que já era bom ainda melhor.

Olho o instrumento montando até a janela e penso nas conexões construídas ao longo da vida. Eu vim de tão longe no tempo e no espaço. E agora minha rotina era ali, em Paris, com permissão para escutar um gênio da música, dentro de um carro confortável, com um motorista gentil, num dia de sol perfeito, em uma cidade tão bonita. O mágico é dar-se conta de que, mesmo com a diferença abissal entre o subúrbio do Rio e o bairro chique de Paris, sempre estivemos sob o mesmo céu.

E se a vida tem percalços, também pode ser doce quando consegue-se identificar o presente. Naquele dia dedicado a ajudar uma amiga a encaixotar objetos, não esperava receber tão doce poesia cotidiana na forma de conexões entre coisas tão simples.

Olho para o céu azul com o intuito de agradecer. E tenho a impressão de ver um anjo “Dulce” sorrindo e tocando acordeão para mim…

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3 comentários

  1. Dona Dulce ! Como não lembrar? Me fez voltar ao passado também,rs.