Canção do exílio

Na vida de expatriado, imigrante, refugiado, enfim, de um ser humano que por um motivo ou outro desterra-se de sua origem, há um fenômeno bastante comum: o dia no qual se chora ao ouvir uma canção de seu país. Eu sei, uma música arrancar lágrimas é um fenômeno corriqueiro, comum mesmo a quem jamais cruzou o portão que separa sua casa da rua. Concordo. A música funciona como gatilho para aflorar emoções. E emoção carregamos conosco, independente de geolocalização. O filósofo Frederic Nietzsche – que na minha rasa opinião foi antes de tudo um grande escritor, portanto, um grande frasista. . .

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Ócio

Reprodução das redes sociais

Do alto do décimo-primeiro andar de um apartamento em Paris, o tédio não me assola. A vida de quem já trabalhava de casa quase não mudou. Aceitei sem grandes crises a ideia de não ir nadar nas piscinas públicas ou dar uma corridinha à beira do rio Sena. Conformo-me com a saudade dos beijos na boca. “C’est la vie”,  diriam meus atuais compatriotas. Os devaneios são interrompidos por uma joaninha intrusa, sobre a folha de um caderno onde faço anotações de economia doméstica (como um cardápio a seguir para ir às compras somente de 15 em 15 dias). E me. . .

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Sobre as pessoas

As pessoas são um tipo de “entidade”. Muito mais que um substantivo feminino no plural precedido por artigo definido. Funciona mais ou menos assim: a usamos quando queremos culpar os outros por algo sobre o qual nós não compactuamos, mas sem nos darmos conta que somos « as pessoas » do discurso do vizinho. Para dizer de forma poética, peço a benção de Saramago: « nós somos o outro do outro ». E comecei assim porque nem ia falar de pandemia … mas « as pessoas ». Ah, “as pessoas”… elas não me deixam falar de outra coisa. Ontem, Sábado de Aleluia para os cristãos, a. . .

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Simplicidade

A simplicidade é a sofisticação máxima. Essa frase não é minha, é do gênio Leonardo Da Vinci e virou meu lema (ou « devise » em francês). Para quem não sabe bem o significado de lema ou « devise », trata-se de uma frase ou palavras de ordem com o objetivo de resumir um propósito. Alguns países têm lemas. Na França é « Liberdade, fraternidade, igualdade ». No Brasil é, ou deveria ser, « Ordem e progresso ». Há pessoas apreciadoras de lemas, escolhendo um para suas vidas. Os lemas podem mudar com os anos, vivências, experiências. Há 15 anos o meu é a frase do Da Vinci. . .

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Clarear

Vim de uma cidade onde reclamar do calor é um dos esportes preferidos da população. Basta os  termômetros  ultrapassarem os 40 graus Celsius, coisa corriqueira na terra de Zeca Pagodinho, Tom Jobim e Fernanda Montenegro, para começar o festival das lamentações.  Claro, quem aguenta um calor desses? Carioca aguenta. E o mais impressionante: aguenta fora do mar e do ar condicionado. Aguentam advogados de terno e gravata andando de baixo para cima com suas pastas carregadas de burocracia. Aguentam as vendedoras de quentinhas a abastecerem o comércio em centros populares como Madureira e Rua da Alfândega. Aguentam os trabalhadores da construção civil.. . .

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As pequenas saudades

Faltavam dois dias para eu pegar meu avião com destino ao lugar onde viria para passar só um ano e acabei fincando minha bandeira. Era uma quente noite de começo de outono no Rio de Janeiro. Havia feito minha última visita à casa da minha mãe, última como filha habitante da mesma cidade, entenda-se bem. Saí de Copacabana rumo ao meu apartamento na Glória e peguei o metrô, como de costume. Ao sair na estação, a 300 metros de casa, dei de cara com uma lua escandalosa ao fundo do Outeiro. Meu coração apertou, como ainda não tivera tempo de. . .

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Gorda

Um dos episódios mais marcantes que eu passei no Rio de Janeiro foi quando uma vez peguei um ônibus para ir ao trabalho.  O destino final da linha era a rodoviária e estávamos numa quarta-feia, véspera de um « feriadão ».   Pois bem, o trânsito estava pesado, muito engarrafamento e o clima no transporte era de preocupação. Quando chegou perto de onde eu ia descer, o motorista, com aquele típico jeito de ser carioca, pergunta: -Alguém quer aproveitar e ficar  no sinal? Muita gente desceu, mas eu, cansada após cobrir um evento e precisando chegar à redação do jornal, ciente de que  a jornada do. . .

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Quem mora longe

Domingo é dia de fazer a feira. Mercado de rua cheio de cheiros, cores e sons. Provas de frutas ali, um quitute acolá, enquanto o carrinho vai se enchendo de maçãs e aspargos, vegetais e flores da semana o pensamento vagueia. É tão legal estar em Paris num domingo de primavera. Ah! O peixe fresco na barraca de confiança não pode faltar. Um pedaço de carne no moço que fala português também não.  Vêm os pensamentos de novo: tirando o pastel com água de coco ou caldo de cana, ritual de lei em qualquer feira carioca, praticamente nada é tão. . .

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Pernas

Existe uma expressão em português que  nem sei se ainda é usada: “Pernas, pra que te quero ?” Sei que o certo deveria ser “pernas, pra que lhes quero?” Ou “as quero”. Mas confesso: o erro de concordância a faz ainda mais autêntica. A expressão é usada quando sentimos o ímpeto de sair mais rápido possível de onde estamos. Seja por pressa, seja por medo do perigo.  O desuso do chiste, no entanto, me parece não ser apenas de ordem linguística. O mundo da mobilidade urbana e seus componentes artificiais para o deslocamento me provam isso diariamente. Ao menos em. . .

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