Ócio

Reprodução das redes sociais

Do alto do décimo-primeiro andar de um apartamento em Paris, o tédio não me assola. A vida de quem já trabalhava de casa quase não mudou. Aceitei sem grandes crises a ideia de não ir nadar nas piscinas públicas ou dar uma corridinha à beira do rio Sena. Conformo-me com a saudade dos beijos na boca. “C’est la vie”,  diriam meus atuais compatriotas.

Os devaneios são interrompidos por uma joaninha intrusa, sobre a folha de um caderno onde faço anotações de economia doméstica (como um cardápio a seguir para ir às compras somente de 15 em 15 dias). E me vem a epifania: estou mais feliz agora, com o ritmo mais lento do mundo, do que antes, quando me sentia o Rubinho Barrichelo das conquistas sociais, econômicas e amorosas.

Sinto culpa por estar bem. E vou desabafar com a psicóloga, uma madame indefectível a me atender por vídeo e com quem tenho aprendido a falar de emoções em outra língua. Ela cita Lacan para me salvar da angústia de estar bem comigo mesma. Tenho esse direito, descubro.

Sem muito a contar de uma Paris perdida em um mês e oito dias de confinamento, dou uma voltinha nas redes. Vejo o Emicida dizer que não pode nem ouvir falar desse tal « ócio criativo ». Eu o entendo.

No fim do século XX, o sociólogo italiano Domenico De Masi lança um livro chamado “O Ócio Criativo”.  A edição logo transforma-se em um best-seller mundial ao defender, em um mundo pós-yuppies, que a produtividade profissional estaria muito mais ligada às pausas de descanso dos trabalhadores do que ao ritmo frenético de um workaholic.

Durante o confinamento imposto a bilhões de pessoas no planeta, por conta da pandemia do covid-19, De Masi voltou a ser citado. Porém, tenho visto deturpação e uso da teoria de De Masi em vão.

O ócio, para ser criativo, exige muito mais um mergulho profundo em si mesmo, só possível se você se permite cortar a unha ou assistir a um passarinho voando através da sua janela.

Nada vai mudar para quem, apavorado com a ideia de encontrar consigo mesmo, corre para se matricular nas aulas de mandarim on-line, ou, sedentário, corre a fazer yoga em casa , o que vai levá-lo a segurar 5 dias de dores musculares em seguida. E, provavelmente, vai fazê-lo desistir.

Nada vai mudar quando não se aprende a lição primordial do Buda Sidharta Gautama: mude a si mesmo e todo Universo ao seu redor responderá com mudanças. Ou como martelou Gandhi: seja a mudança que quer ver no mundo.

Seja menos exigente com os cabelos sem salão de beleza. Seja menos exigente com a barriga menos sarada. Seja menos exigente com sua incapacidade de costurar uma máscara com a manga da camiseta, aparentemente tão fácil de fazer segundo o tutorial. Seja menos exigente com sua vontade de fazer uma sesta no meio da terça-feira produtiva. Seja menos exigente com o outro com quem você não se identifica.

Porque se você está podendo dar-se ao luxo de ter o tipo de dilema sobre “o que produzir durante o confinamento”, rapaz, você é um tremendo privilegiado. Certamente tem um teto seguro, uma geladeira com comida, um trabalho possível de se realizar de casa ou ao menos um trabalho garantido ao fim da pandemia.

É sinal que ninguém que você ama precisa sair todo dia e se expor ao risco de contrair uma doença desconhecida. Ou não perdeu ninguém que ama para essa mesma doença. Também é sinal de que mora com quem você sempre quis morar. Não terceirizou a educação dos seus filhos. Tem carinho e amor espalhados por aí – e uma internet sem fio capaz de o aproximar destes queridos, hoje distantes fisicamente.

Seja benevolente com quem vive sem dilemas e sem possibilidade de se entregar ao ócio. A existência é algo solene, não um meio de servidão voluntária. Olhe pela janela e reflita. Ceda à tentação de publicar sua paisagem na rede social.

Verá o quanto de criatividade habita em você e pode saudar a criatividade que habita no outro. Não fazer nada é um direito, não um dever. Faça do seu ócio um prazer a ser desfrutado. E não mais uma imposição social.

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