A “RiodeJaneirização” de Paris

O olhar de fora – ou o olhar do estrangeiro –  costuma entusiasmar os antropólogos. Estou longe de ser antropóloga. Muito menos domino algum campo de qualquer ‘ologia’. Sou apenas uma jornalista de meia idade que resolveu lançar-se numa vida de imigrante em um momento tardio – ou, no português simples, já considerada velha pela sociedade para sair por aí de mala e mochila.

Por outro lado, a maturidade nos dá a vantagem da experiência. E esses olhos de vista cansada já enxergaram alguns fenômenos. Muitos deles tive o privilégio (ou a fatalidade) de ver acontecer exatamente no momento no qual brotavam. E, talvez por isso, seja um pouco mais fácil reconhecê-los quando pipocam novamente diante de nós.

Vejam os senhores a situação de Paris. Apesar de todo seu apelo e beleza – e de ainda apropriar-se do título de cidade mais visitada do mundo – já começa a dar sinais de uma realidade nada confortável: mudanças em hábitos e costumes em função da violência. Nascida e criada na cidade mais icônica do Brasil, não consegui deixar de identificar uma iminente ‘riodejaneirização’ de Paris.

Usei este neologismo para fazer um paralelo entre as duas cidades a respeito de como, quando a violência paira como probabilidade real, a vida da gente vai mudando. A coisa é sutil.

Desde os anos 1970, ou talvez antes, a França convive com terrorismo e a modalidade nos anos anteriores era colocar bombas nas latas de lixo. Os modelos antigos em ferro ou cobre, tão característicos de Paris da Paris dos séculos XIX e XX, eram propícias para abrigar explosivos.

E as ameaças constantes levaram as autoridades a mudar os recipientes destinados ao lixo na cidade. Já não é de hoje que nem encontramos mais as charmosas lixeiras antigas (hoje objetos de desejo de colecionadores em leilões de antiguidade) Agora são com grades de ferro envolvendo o saco plástico transparente, através do qual vê-se o que está lá dentro. Outro exemplo mais recente aconteceu em 2015.

A lata de lixo antiga de Paris, substituída por plástico transparente.

Logo após os atentados à Redação da revista Charlie Hebdo, o prédio onde moro ganhou grades na entrada externa. Antes, havia apenas um jardim de livre acesso até a porta do prédio. Vi esse mesmo fenômeno acontecer no Rio de Janeiro nos anos 1980, 1990. Desafio alguém a encontrar um prédio no modelo anos 70, com aquele ‘jardinzão’ na frente e o acesso por uma porta de vidro.

No Rio, pelo medo de assalto. Em Paris, o medo é de um ato terrorista.

Hábitos e cultura também sofrem alterações. Ano passado, a prefeitura cancelou um dos eventos mais legais que havia por aqui: cinema ao ar livre durante o verão. De graça, cheguei a assistir La Môme (o filme sobre Edith Piaf) deitada na grama dos Invalides. Mas no ano em que mais de 80 pessoas morreram atropeladas por um caminhão em Nice, não deu para levar o projeto de gente deitada em um gramado ao lado de uma via…

E quando ouço dos amigos residentes em outras paragens “ah, tenho medo de ir à Paris”, alguma coisa soa familiar aos ouvidos cariocas. Já teve amigo gringo cancelado a viagem à Cidade Maravilhosa com medo de pegar dengue na época (perdeu a chance, pois agora arriscar-se-ia a contrair zika, chikungunia e febre amarela).

E os distraídos viraram ameaça nacional. Atualmente ninguém mais fica indiferente a uma sacola sozinha em um banco ou chão do metro. É um tal de parar a linha inteira em função do colis suspect (pacote suspeito). Evacua-se a estação. Chega a brigada antibomba. Afinal, quem esqueceria um pacote da Chanel em um banco de metro?? (isso não é licença poética, vi acontecer)

E tudo só volta ao normal depois de constatarem que a embalagem esquecida era realmente um produto da grife, provavelmente esquecido por algum portador de TDA endinheirado e que devia achar exótico andar de transporte público em outro país, pois onde mora só deve andar de carro blindado.

As residências parisienses já são cheias de tranca e publicidade sobre sistemas de segurança vemos por todo lado. Os charmosos códigos numéricos de abertura de portas parisienses vão sendo substituídos por chaves eletrônicas, sem as quais não se entra casa e, no caso do meu prédio, nem se sobe no elevador.

E vamos adotando novos hábitos e adaptando-se às novidades meio sem perceber. Mas quando já se começa a incomodar entrar no cinema sem ninguém para pedir o bilhete – ou achar que o guarda do museu não olhou sua bolsa direito (poderia haver uma faca escondida no pacote de absorvente, ora) – sinal de mudanças na ordem. Na nossa própria ordem interna… e o medo entrou em cena.

Não gostaria de parecer fatalista. Meu olhar e minhas constatações são apenas vícios do ofício de observadora. Talvez não existam meios de retroceder e de certo estas novas formas de ir levando o dia a dia nos entristecem.

Resta-nos, no entanto, a resistência.

Afinal, apesar dos pesares, o Rio de Janeiro continua lindo e Paris continua sendo.

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4 comentários

  1. Ana Paula, que texto delicioso de ler! Voce colocou em palavras o que eu venho sentindo a cada visita a Paris, e tambem a Marseille e Lyon. É triste, mas infelizmente nao é uma surpresa. No fim das contas, me sinto muito mais segura aqui no oriente medio mesmo 🙂

    1. Querida Paula, muito obrigada pela leitura. Vamos resistindo a este mundo que, por vezes, nos entristece…

  2. Com os bandidos declarados, fanáticos de todas as cores e credos e/ou loucos a solta por aí, espalhando o terror, fica difícil viver sem preocupação com a violência nas grandes cidades do mundo nos dias de hoje. De alguma maneira, temos que nos adaptar à nova realidade, se não, ficamos paranoicos, não saímos mais de casa e nos tornamos reféns do terror.
    Tive que me mudar de onde morava por causa da violência do tráfico. Moro hoje num belo lugar, cercado de natureza, mas também de “segurança”. É um pouco triste isso, mas c’est la vie.

  3. Excelente texto e análise .Lamentável constatar diariamente que estamos caminhando dessa forma.