Canção do exílio

Na vida de expatriado, imigrante, refugiado, enfim, de um ser humano que por um motivo ou outro desterra-se de sua origem, há um fenômeno bastante comum: o dia no qual se chora ao ouvir uma canção de seu país.

Eu sei, uma música arrancar lágrimas é um fenômeno corriqueiro, comum mesmo a quem jamais cruzou o portão que separa sua casa da rua. Concordo. A música funciona como gatilho para aflorar emoções. E emoção carregamos conosco, independente de geolocalização.

O filósofo Frederic Nietzsche – que na minha rasa opinião foi antes de tudo um grande escritor, portanto, um grande frasista – define lindamente seu conceito de música. Para ele, sem música a vida seria um erro. 

Eu não sei alemão, fiz apenas uma tradução ao pé da letra do francês para o português da frase Nietzscheniana. O filósofo foi preciso. Afinal, a vida muitas vezes já não é lá essas coisas. Sem música não daria não. 

Imagina, por exemplo, 2020 sem uma trilha sonorazinha para adoçar a alma? Beiraria o limite do insuportável…

Pois bem. Admitindo que todos os 7 bilhões de potenciais vítimas do coronavirus deste planeta já choraram ou vão chorar por escutar uma canção, a frase inicial desta crônica não passa de uma evasiva. 

Mas eu vos suplico: não desista ainda não, que eu tenho uma razão pata você não desistir! O fato de verter lágrimas por escutar música  no exílio – seja ele voluntário ou involuntário – tem uma certa peculiaridade: a de se chorar com a mais improvável das canções. 

A voz da Ivete Sangalo ecoando um “E vai rolar a festaaaaaa! Vai rolar” arrancou um choro convulsivo de um amigo morador de Seattle, durante uma festa de casamento por aquelas bandas. Virou même no grupo do WhatsApp. Conheci quem já chorou com “Balancê balancê” na voz da Gal. Chorava e dançava como num ritual Sufi. Ouvi relatos que até Seu Jorge mandando sua “Burguesinha” amoleceu coração de marmanjo expatriado. E a Rita Lee já espirrou seu “Lança Perfume” de um lado, enquanto uma mademoiselle escondia-se para espirrar suas lágrimas num canto qualquer de Paris. O “coisinha tão bonitinha do pai” tocado em Marte? Qual coração longe de Madureira aguenta isso?

O choro de expatriado não faz discriminação. Pouco importa se é um sertanejo composto pata embalar a mais profunda das fossas, ou se é uma marchinha da Carnaval bem humorada, feita para pular e embalar beijo na boca.

Somos vulneráveis a qualquer tipo de acorde. Eu presenciei um dos mais marcantes. Foi durante um animado forró em plena Cidade Luz. O sanfoneiro, digo, a playlist, vai de “Tô rindo à toa”, do grupo Falamansa. A conhecida ao meu lado engatou num soluço incessante. Eu, sem entender, perguntava angustiada sobre o motivo da rajada de lágrimas. No momento em que a respiração lhe permitiu, eu escutei a explicação:  “eu nunca tinha prestado atenção na letra, você ouviu? Ela diz ‘Tô numa boa, tô aqui de novo. Daqui não saio, daqui não me movo Tenho certeza, esse é o meu lugar’. Isso é a minha vida!” 

E chorava até não aguentar mais, enquanto eu lhe confortava e oferecia lenços de papel.

Tolo quem pensa estar imune a estes rompantes. Anos depois, estou eu numa festa dessas na qual a “mixité” faz a alegria de franceses e brasileiros. Um dos amigos presentes pega o violão. O repertório, animado, passava por Cazuza, Lenine, Beatles e Caetano. Até que o incauto começa a dedilhar “Geni e o Zepelin” do Chico Buarque.

Rapaz.  Veio um troço das profundezas do meu eu. Ainda tentei controlar, mas foi pior. O choro veio como a erupção do Etna, a ponto de eu ser retirada da roda de viola pela dona da casa, que rapidamente me deu uma taça de vinho (aqui não tem negócio de água com açúcar não). 

Mais calma, e no afã de querer me justificar, soltei, com a voz ainda embargada  “gente, essa letra é um tratado filosófico! Linda!”. A frase abestalhada só serviu para as pessoas me olharem com um olhar de dó ainda mais intenso. 

Não me perguntem o que meu coração expatriado sentiu ao ouvir tais versos. Mas a tradução sentimental foi de que todos que atrevem-se a um dia morar longe de suas raizes vão enfrentar uma solidão daquelas que podem surgir mesmo na arquibancada do Maracanã em dia de final Fla x Flu. E aí a empatia com a Geni após foi inexorável.

Quantas vezes, no glamour dos endereços luxuosos parisienses eu só queria, naquele agora, voltar pra minha gente? Estar no “meu cais do porto”, em companhia dos meus “negros tortos” e louca pela partida do comandante do Zepelin?

São sentimentos os quais escondemos. Porque no fundo são escolhas. E a cidade em romaria, essa metáfora da sociedade, tão poeticamente bem descrita por Chico, nunca nos deixa esquecer. “Não reclama não! Está aí porque quer”. Ou “Não reclama não! Prefere o que? Voltar para destruição da guerra?”

E um dia vem uma canção e nos traz à tona apenas uma vontade de poder querer diferente. O choro e a vontade passam. Mas a canção do exílio nosso de cada um fica pra sempre.

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