Gorda

Um dos episódios mais marcantes que eu passei no Rio de Janeiro foi quando uma vez peguei um ônibus para ir ao trabalho.  O destino final da linha era a rodoviária e estávamos numa quarta-feia, véspera de um « feriadão ».  

Pois bem, o trânsito estava pesado, muito engarrafamento e o clima no transporte era de preocupação. Quando chegou perto de onde eu ia descer, o motorista, com aquele típico jeito de ser carioca, pergunta:

-Alguém quer aproveitar e ficar  no sinal?

Muita gente desceu, mas eu, cansada após cobrir um evento e precisando chegar à redação do jornal, ciente de que  a jornada do dia seria de pelo menos umas 13 horas até escrever a matéria antes do fechamento, tratei de prevenir:

-Motorista, eu vou descer no ponto mesmo, tá?

Foi quando fui surpreendia com a manifestação de um homem – que ao longo do trajeto já demonstrava muita insatisfação, resmungando palavrões e bufando a cada lentidão do tráfego.

-Ah, não! Pelo amor de Deus! Tem gente que vai viajar e tá com risco de perder o ônibus! Ca…(ele solta um palavrão), não pode caminhar até o ponto, não? Gorda pra caramba, devia andar mais!

Percebendo o tom ofensivo, confesso ter ficado bem abalada.  Mas consegui me dirigir a ele perguntando se estava se referindo a mim. Ao receber a resposta afirmativa, aos gritos, só tive tempo de dizer o que veio à cabeça.

-Eu pelo menos posso emagrecer. Pior quem é feio e nem cirurgia plástica adianta

O povo no ônibus riu, mas o indivíduo grosseiro não se fez de rogado. Mais revoltado ainda, de grosso acrescentou o deboche.

-Ah, agora a gordona se acha bonita, é? E desde quando gorda é bonita? Gooooorda! Goooorda! 

E ficou gritando “gooooorda” inclusive pela janela, depois que desci do ônibus. 

Lembro de ter entrado no prédio onde trabalhava, em frente ao ponto de ônibus, com o som de “gooooooorda” ecoando  em meus ouvidos. Entrei no banheiro, já aos soluços, uma colega, hoje uma amiga, solidarizando-se, me consolou.

-Não liga pra esse idiota. E você não é gorda!

Salto no tempo de 10 anos depois, estou sentada sozinha no balcão de um bar em Paris. O barman, um homem bem atraente, começa a puxar conversa. Num dado momento do diálogo, ele me diz:

-Você é muito bonita. Uma das mulheres mais bonitas que já vi de perto.

Percebendo, enfim, o tom de cantada e não estando interessada, respondo:

-Não sou bonita não, sou gorda.

O francês me olhou com uma cara de quem não tinha entendido. Falei então em inglês. Ele rebateu:

-Desculpa, mas não  foi a língua que não entendi. Foi sua associação entre ser gorda e não ser bonita. Conheço gordas lindas e magras feias, magras bonitas e gordas feias. Eu não estou falando do seu biótipo. Estou apenas te elogiando. Eu te acho linda.

O choque levou à reflexão imediata. Vim de um país onde ser gorda é sinônimo de ser feia. Não digo que não haja isso aqui, mas é em menor grau. Principalmente em se tratando de atratividade entre pessoas seguidores do preceito heteronormativo, baseado nas relações afetivas ou sexuais de quem tem atração pelo sexo oposto – pois é a seara que conheço. 

A frase ouvida da amiga na redação uma década antes “você não é gorda”, escutei a vida inteira. Hoje percebo que quem me falou isso estava querendo dizer “olha, você é bonita mesmo com a balança marcando um Índice de Massa Corpórea (IMC) de obeso.”. Seja porque meu corpo, apesar de redondo, tem forma de violão. Seja porque o “conjunto da obra” transmite uma certa harmonia que pode até me “fazer passar por normal”.

Normal no sentido de norma, padrão vigente. Muitas pessoas não fazem isso por maldade.  Mas gostaria de aproveitar a lição aprendida no balcão de bar parisiense para alertar que existe preconceito nessa fala. 

Tanto preconceito quanto aquele ouvido por pessoas negras do tipo “ah, mas você não é preto”, quando o indivíduo tem pele em tom menos escuro, ou as tais “feições finas”.  Ou do gay que escuta “ah, mas você sabe se comportar, não fica dando pinta por aí”, dito a quem não carrega o estigma do “viado que desmunheca”.

A negação de uma condição transformada em pretensos elogios só atrapalha o combate à padronização dominante. Essa mesma padronização que leva aos preconceitos de raça, compleição física, orientação sexual e o que mais houver.

Eu poderia teorizar infinitamente sobre essa questão, citando autores, filosofia etc. Mas este espaço não tem pretensões acadêmicas. Ao mesmo tempo, basta irmos a um museu e ver algumas modelos da Renascença ou até do Impressionismo para termos certeza: padrão de beleza é uma construção social. 

E se tem uma coisa boa dessa contemporaneidade na qual somos conectados pela tecnologia, é a capacidade de, justamente, desconstruir esses paradigmas. Eu sinto falta de mais representação de mulheres gordas consideradas sexy e bonitas. Eu estou cansada do estigma da gorda engraçada ou nerd. 

Estou cansada de um mundo onde “gorda” é xingamento. 

E o que isso tem a ver com Paris? Talvez o aprendizado de que ser gorda não quer dizer ser feia. Ou talvez porque, em terra de perna fina, quem tem coxão é rainha…

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12 comentários

  1. Sensacional! Agora consegui entender porque eu sentia raiva das pessoas que me falavam « mas você não é preta » gostavam de mim mas não queriam ter uma amiga negra, aí usavam essa frase para se auto convencer…
    E aqui na França nunca se confundiram com meu tom de pele e traços… sou negra!

  2. Adorei, sou gorda e assumida como tal, lamentavelmente ainda vivendo no Brasil preconceituoso, onde o máximo que alguém acima do peso ouve é: que pena com um rosto tão bonito!

  3. Valeu a sia cronica. Bonita é a pessoa agradavel que sabe viver e ter educscao suficiente pata respeitar a todos e nao como aquele ignorante acefalo que a ofendeu aqui no Brasil. A beleza está em quem a vê. Amei seu texto.PARABÉNS.

  4. Belíssimo texto e tudo é verdade . Afinal nosso país é místico. Eu sou fofa e nunca me preocupei com cometermos cretino.

  5. Amei esse texto! Escreva mais desse tipo,foi ótimo ler!
    Alcyone

  6. Adorei sua crônica. Sou figurinista e atualmente crio roupas p uma academia de dança. Dizer q uma criança ou jovem é gorda é pior q xingar a mãe. Nem as de 3 aninhos…fico abismada e triste c tanta ignorância. Ser gorda no Brasil é proibido. Ser gorda é ser nojenta preguiçosa feia desprezível. Retrato de um país preconceituoso e hipócrita. E vive lá France!!!

  7. Amo “esses acaso da vida”…parei para ler sobre o exagero dos adoçantes e “me vejo por aqui”, lendo outras crônicas.AMEI! Continuarei leitora! Gratidão!

  8. Lamentável esse mundo onde as pessoas colocam rótulos.
    Cada um é único,do jeito que foi feito,com o s u próprio biotipo.
    Nunca fui magra mas não sofria por não pertencer ao padrão ditado como ideal.
    Prefiro ser como crianças que não veem as diferenças como obstáculo.
    Amar a si mesmo do jeitinho que é , é fundamental.
    O importante é ser feliz.

  9. Maravilhoso o seu texto e como vc se coloca em.um mundo cheio de preconceitos.
    Tenho amigos gordos, magros, alto, baixos, coloridos, gays, heteros!
    Eu sou uma baixinha gordinha, gostosa e delícia!!😂😂😂
    Vida que segue! Bjs

  10. Minha sogra francesa me achava muito magra. Na época, por eu ser bem jovem, aquilo me soava a elogio. Mas ela em seguida dizia: Na França tem um ditado que diz: QUANDO SE CHEGA A UMA CERTA IDADE, A MULHER TEM DUAS OPCOES: OU ESCOLHE O ROSTO OU O CORPO. Ou seja, uma gordinha com um rosto lindo ou uma magrinha com o rosto” chupado”. Na verdade ela nao gostava de mim kkk Descobri que podemos ser o que nós quisermos e ninguém tem o poder de nos por pra baixo. Amei tuas considerações.