Jantar com rainha


Jornalista é a profissão a qual qualquer um sente-se qualificado só pelo fato de ter smartphone e conta em rede social. É meio fora de moda atualmente acreditar que estudar, praticar e atualizar-se são pré-requisitos básicos para exercer o ofício.

Conjecturava sobre o tema ao lembrar de uma dessas tardes remotas, quando trabalhava de casa, tentando  acostumar-me ao calor primaveril de Paris. O ano era 2016 e eu já praticava o tal “home office”, “teletrabalho”. Ou simplesmente “trabalhar remotamente”. Sempre fui à frente do meu tempo. 

Chega então uma mensagem da editora-chefe de uma famosa revista feminina. Haveria um evento na Europa para o lançamento de um perfume de uma grande marca. E uma das maiores atrizes do mundo – garota propaganda, digo, “embaixadora” da marca – estaria disponível para entrevistas. 

Cate Blanchett, atriz renomada e recém angariada com Oscar de Melhor Atriz num filme de Woody Allen, em plena filmagem de uma vilã para uma produção da Marvel, mãe de três meninos e tendo acabado de adotar uma menina. Isso  já renderia uma página de entrevista para qualquer revista feminina.

E se, além disso, houvesse uma instituição privada disposta a pagar bons anúncios, caso esta entrevista fosse publicada, melhor ainda. O combinado seria tipo o que acontece hoje com a indústria da “influenceria”: a revista faz a entrevista parecer natural, o patrocinador paga comprando publicidade. Essa junção da fome com a vontade de comer é, no jargão jornalístico, carinhosamente chamada de matéria recomendada. Ou “reco”, para os íntimos.

Convocada para essa “reco” na tarde quente em Paris, quis saber mais detalhes. 

A missão consistia em ir para Londres de primeira classe no famoso trem Eurostar. Ser recebida por um motorista particular na porta da St. Pancras Station. Hospedar-me num hotel com a chancela Relais & Châteaux (hoje superior ao 5 estrelas). Participar de eventos com perfumistas contando como chegaram até a fragrância. Entrevistar a celebridade em 15 minutos. 

Depois, o maior trabalho seria mesmo o de transcrever a entrevista do inglês para o português. Redigir um “abre” bacana (chama-se abre o texto que antecede a entrevista, contando resumidamente sobre o entrevistado e contextualizando a conversa para o público). E ainda  ganhar uns euros honestos por isso. 

Para a revista, sairia bem mais barato contratar uma freelancer radicada na Europa e que falava de forma decente o idioma de Shakespeare. E embora eu não consiga ler Shakespeare na língua original sem reler  5 vezes cada estrofe e apoiando-me  no Tresaurus a cada 3 palavras, tenho inglês suficiente para levar uma entrevista com uma atriz australiana em linguagem contemporânea (obrigada professores do Brasas Méier!). 

Missão aceita, as perguntas foram enviadas à assessoria de imprensa previamente. De oito questões, uma foi recusada. Justamente a que eu pedia para falar de sua relação com o marido. Minha pergunta era sobre o fato de ela ser super famosa e ele nem tanto, nesse mundo onde o protagonismo ainda é encabeçado pelo gênero masculino.

Passei quase toda a viagem de trem, regada a frutas e croissants quentinhos (coisas de primeira-classe), a refletir como eu conseguiria tocar no assunto vetado. Mas fui interrompida pela necessidade de fazer a agenda pessoal. 

Afinal, eu teria algum tempo, entre um evento e outro, de rever amigos e passear em uma das cidades que mais amo no mundo.

Cerveja em pub, caminhada na Left Bank e jantar na casa de queridos depois, chega a manhã na qual o motorista já me esperava para levar-me ao trabalho. Mal curti o Rolls Royce de mão inglesa durante o ridículo trajeto de dois quarteirões. “Poxa, eu poderia ter vindo a pé”, disse ao chofer na chegada. Com o típico humor inglês, ele responde “Mas aí a senhora não teria tido o prazer de ser conduzida por mim”. Ri e desci do carro me sentindo “Miss Daisy”.

Chego com meus trajes confortáveis e já levo aquele choque de realidade. Para começar, a única gorda era euzinha. No ambiente de moda, até repórteres lembram manequins. Muita maquiagem, muitos sininhos ecoando das bolsas Dior. Para os meninos, calça skinny com terno. Decido ir para o meu canto e esperar ser chamada na hora da entrevista.

Uma simpática oriental sentada ao meu lado dirige-se a mim: “Desculpa, dá licença, sua bolsa é linda. Ela é de quem?”. Confesso ter demorado a entender que ela perguntava sobre assinatura, o criador. Lamentei não saber o nome da simpática artesã que me a vendeu na feira da Lavradio, mas a informação de um artigo feito a mão no Rio de Janeiro já causou  um “ohhhhh amazing!”.

Engrenamos um papo e a coleguinha me contou ter ouvido falar que Blanchett era do tipo arrogante e que corta a entrevista quando não gosta do entrevistador.

Eu fiquei pensando o que poderia ser mais difícil que entrevistar um político brasileiro. E o que poderia fazer Madame Blanchett não gostar de mim. Minha bata colorida em meio ao preto, bege e cinza da indumentária dos demais presentes? Minha bolsa sem marca? Meu calçado da linha confort? A falta de maquiagem? Fui interrompida em meus devaneios pelo grito de “Misses Cardousso!”. Era o assistente chamando meu nome do jeito que ele conseguiu pronunciar. Peço licença à colega e entro na sala. 

Encontro uma dama alta, impecavelmente vestida e perfumada. Apertamos as mãos, digo quem sou e de onde sou. Ela solta um sorriso e diz “Ah, Brazil!” . Pergunto, enquanto ajeito o aparelho que vai gravar a conversa,  se ela já esteve lá. Cate diz “Ainda não. De qual cidade você e?”. Após a resposta, ouço:  “oh! Estará lá nas Olimpíadas?”. Respondo que não, e pergunto quais lugares ela gostaria de conhecer no Brasil “O Rio de Janeiro e a Amazônia”. A essa altura, o assistente já estava olhando ressabiado. 

Mas o moço arregalou mesmo os olhos quando ela me pergunta se eu tinha vindo do Brasil só para a entrevista. Ao responder “não, eu moro em Paris há dois anos” a Blue Jasmine reagiu como qualquer mortal comum: “Ahhh, Paris! Agora entendi porque deixou o Rio”. Rimos. Ela me oferece água ou café. Recuso e aviso que vou ligar o gravador. 

A entrevista flui. A pergunta proibida é feita sem que ela perceba. Aos 25 minutos de papo, o assistente nos interrompe para dizer que outros jornalistas esperavam e eu deveria fazer a última pergunta. Já as tinha feito todas. Estava ali já no lucro das informações. Aproveito a interrupção para perguntar se posso tirar uma foto dela. A célebre musa de Hollywood pega o celular da minha mão, entrega a seu assistente e diz “tira uma foto nossa”.

Enquanto eu olhava a foto ela ainda fala  “agora um selfie pra garantir”. Agradeço, saio da sala com a missão mais que cumprida. Outra assistente pergunta se quero um táxi. Eu digo “obrigada, vou andando. O hotel é muito perto”. Ela confere “quer agendar um táxi para vir ao coquetel mais  tarde?”. Respondo  mais uma vez que não, gosto de caminhar.

O ar londrino refresca as ideias. Uma das maiores lições de jornalismo que aprendi foi fazer um bom rapport. Rapport é outro termo jornalístico para se referir aos minutos iniciais de uma entrevista. Devemos transmitir calma e neutralidade. Sermos gentis sem sermos subservientes. 

Em 30 anos de exercício de uma profissão pouco valorizada, aprendi também que devemos nos informar ao máximo sobre o entrevistado. E, uma vez diante dele, fazer o papel de quem tudo ignora é fundamental. Perguntando como se nada soubéssemos, dando ao entrevistado a palavra que será levada ao público, ganharemos o entrevistado, por mais difícil que ele seja. 

A outra lição primordial é, após o trabalho, sempre lembrar do seguinte provérbio inglês: o jornalista é aquele profissional que janta com a rainha, mas volta de ônibus para a casa. O ditado vem de uma Inglaterra do fim do século XIX, quando o metrô de Londres só servia ao Centro da Cidade e chegar de ônibus em casa significava morar em bairro pobre.

A pé para o hotel luxuoso, lembro que, diferente do que se pensa, não há glamour na profissão. Ao menos ao jornalista ciente de que precisa domesticar o ego. E isso só é possível com o constante exercício da generosidade e da humildade. 

O grande deslumbre não é estar na cena requintada, mas verificar que graças ao bom trabalho, aquela uma única página previamente programada, que sairia mais para chamar o anunciante, transformou-se em quatro. A entrevista com Madame Blanchett “rendeu” (para usar outro jargão da área) graças à química entre entrevistador e entrevistado.

E essa talvez seja a grande alquimia de um bom trabalho jornalístico: através da verdade e da apuração precisa, transformar qualquer caso em história interessante.

Fazer reco, eu diria, é fácil. Receber um « cala a boca! » nem tanto. 

Porém, seja nos bons e maus momentos, todo jornalista deveria lembrar: reis, rainhas, mitos e influencers passam. 

A imprensa fica. 

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