Faz doce

Uma das expressões que mais gosto na língua francesa é quando se refere ao tempo ensolarado. Quando está sol, além dos filhos da pátria não dizem, como nós, que o tempo está bom. Eles falam: « Il fait beau! ». Numa tradução literal, « il fait beau » quer dizer « faz bonito ». 

Eu e algumas amigas brasileiras gostamos de subverter as linguagens, por isso já adotamos o « fazer bonito », quando falamos em português entre nós. Por exemplo : « amanhã podemos fazer um piquenique, caso faça bonito, né? ». A gente curte dizer dessa forma.

Hoje, domingo de sol, antes de descer para votar e depois ir às compras usuais da semana, encontro um vizinho no corredor. Batemos um papo sobre a situação geral. Conversa sobre Paris e o desafio de ficar sem seus cafés pra cá, ideias de como vai ser com as crianças sem escola pra lá, até que o elevador chega e pergunto:

— Você, que veio da rua, pode me dizer se está muito frio lá fora? 

— Que nada! Faz super doce!

“Fazer doce” também é usado para se referir ao tempo, quando as temperaturas estão amenas. Meu coração amolece, sorrio e digo « até mais, beijinhos ». O vizinho ri, acena com a mão e diz « ah, sim, agora beijinho só de longe ».

O domingo bonito e doce traz uma outra realidade na rua. Desço, me deparo com pessoas afastadas um metro uma das outras, na fila para votar. O álcool gel é obrigatório antes de pegar a cédula. Nos mercados, muita gente e prateleiras vazias. 

Mas o domingo está bonito e doce, vou repetindo como um mantra mental. Chego ao mercado de produtos orgânicos que frequento todo dia e não acho quase nada. Pergunto ao rapaz do caixa:

— Você sabe dizer se o abastecimento vai ser normalizado amanhã?

—- Não sei dizer, senhora. Porque ontem chegaram produtos, só que as pessoas compraram tudo. Está todo mundo louco, pensam que é o fim do mundo. 

Enquanto tiro do cesto o único produto encontrado e respondo meio no automático:

— Mal sabem elas que o fim do mundo pode ser todo dia… nunca sabemos de que ou quando vamos morrer…

O moço do caixa para com o saco de arroz na mão, me olha e diz:

— Concordo totalmente com a senhora. Fim do mundo não é ficar sem comida, mas sem poder abraçar as pessoas 

Eu fiquei assustada em ouvir isso de um não-brasileiro. Desceram todos os preconceitos que eu, arrogante que sou, acreditava não ter. Olhei para o menino, tão jovem, trabalhando num caixa de mercado num domingo de sol e me bateu um sentimento bom.

Sensação de que todo esse caos, por causa de um virus de nome sonoro, vai nos fazer refletir. Em casa, sozinha ou acompanhada daqueles que amamos (ou deveríamos amar), tendo oportunidade de consumir menos, de julgar menos, de se apressar menos. E de lavar as mãos com um bom sabão. 

Quem sabe, parafraseando Gilberto, o coronavírus veio nos restituir a glória, de reconhecer no outro importância igual à nossa.  Talvez a humanidade acorde a tempo de compreender que sem papel higiênico até sobrevivemos, mas sem afeto e solidariedade, não resistiremos.

Uma quarentena bonita e doce a todos nós.

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2 comentários

  1. Muito bom! É difícil mesmo viver sem beijar e abraçar, nós brasileiros(cariocas) tão fulgazes..
    Um beijo virtual para vc! Pque virtual… pode!😘💔

  2. Delícia. O “crônicas” por menos histeria e ignorância e por mais reflexão e solidariedade. Que aproveitemos todos nossas quarentenas com sabedoria.