Mulher livre

Era nossa primeira conversa ao telefone:
– Alô? Oi? você ouviu o que perguntei?

– Desculpa, me dispersei. Pode repetir?

– É por causa do meu sotaque, né?

– Não mesmo. É que você fala muito, como todas as mulheres, e eu tenho dificuldade em me concentrar no que dizem. Minha filha reclama da mesma coisa…

– Eu reclamei, por acaso?

– Não, não. Desculpa. Coloquei mal. O que quis dizer é que o problema é meu. Sou eu o abestado (ele usou « bête » e achei mais razoável traduzir para abestado). Vamos jantar na sexta-feira? Olhando nos olhos eu me concentro melhor. 

Era para euzinha, com bons quilômetros rodados em termos de encontros erótico-amorosos, ter dito simplesmente : « Olha, vamos ficar por aqui. Sugiro você encontrar uma mulher mais caladinha ». 

Mas a libido e o esfriamento –  e depois fim- de um namoro recente, trazidos pelo confinamento, me induziram a tentar uma evasiva: 

– Eu não estou muito a fim de restaurante. Fiquei muito seletiva em relação à comida por conta da pandemia…

Ele, rápido como quem rouba, desmontou minha tentativa de fugir pela tangente:-

– Eu quero encontrar você. Qual outro lugar? Um parque? Um passeio? Museu?

Em dúvida, sugeri um jardim de um museu perto de casa, onde há um simpático café.

Fora do virtual, o cidadão era bem mais agradável que na foto do site de encontros. Mas algo curioso aconteceu:  mal nos cumprimentos, o filho da pátria francesa desandou a falar sem parar. Contou sua vida como um todo, onde nasceu, quantos irmãos, filhos. Falou um pouco, mas com entusiasmo, de sua vida profissional. E ficou por pelo menos uma hora contando sua viagem ao Brasil, para três lugares que eu conheço bem. 

Em um determinado momento, ao tomar um gole de seu café (que àquela altura já deveria estar frio) eu perguntei que horas eram. Ambos tínhamos compromisso mais tarde. Ele viu a hora e levou um susto.

– Nossa! Nem senti a hora passar! Estamos há três horas falando.

Não hesitei:

– « Estamos? » Você quer dizer VOCÊ está falando há quase 3 horas. O que foi isso? Vingança por eu ter falado muito na primeira vez ao telefone?

Ele explodiu numa risada atípica por essas terras aqui. Concordou que, de fato, não sabia o que tinha dado nele, admitiu ter falado realmente muito e depois pediu desculpas, caso tenha parecido rude ao telefone.

Aí eu precisei aproveitar a deixa.

– Sabe uma coisa que até hoje, aos 50 anos, me surpreende? É ver um homem com 55 anos não ter o cuidado de ser cortês com uma mulher na primeira vez que fala com ela. 

– Mas você acha que faltei na cortesia?

Aí entra aquele cansaço feminino que os homens nunca vão entender. Porque o machismo estrutural é tão arraigado que eles costumam nos colocar na condição de «candidatas», como se os homens fossem os responsáveis por uma espécie de processo seletivo, sempre à procura da melhor, da mais « adequada » ao posto de mulher, namorada, amante etc do incauto conquistador. Tem uma aura do tipo « eles vão perder, nós, mulheres, vamos ganhar estando com eles »

E, nós mulheres, seríamos as « escolhidas » pelo detentor do falo (até concordo que algumas fêmeas da espécie humana se colocam nesse lugar, mas tudo é fruto da mesma matriz misógina).

Porque somente essa visão distorcida e desigual dos papéis femininos e masculinos nessa sociedade humana justificaria o fato de um homem interessado em uma mulher falar coisas do tipo « O seu cabelo é pintado? ». « Você come muito, tem que tomar cuidado pra não engordar ». « Você fala muito, como toda mulher ». « Você não vai me convidar pra subir? Olha, vai me perder e eu sou uma raridade, hein? ». « Olha, quero deixar bem claro que eu não quero uma relação amorosa, tá? ». 

As frases escolhidas não são frutos de ficção. Eu as ouvi. Seja  no primeiro encontre, seja no primeiro contato sexual. 

Raciocinem comigo. E se fosse ao contrário? Imaginem nós mulheres, interessadas no sujeito, dizendo: « Seu cabelo caiu quando, antes de se tornar careca? ». « Essa barriga protuberante é problema de entupimento de artérias ou você é preguiçoso mesmo? ». « Você costuma escovar os dentes? ». « Você usa desodorante? O cheiro debaixo do seu braço tá me incomodando ». « Você é todo grosso ou só nas atitudes? Pois caso seja em outras partes eu posso até me interessar mais ». « Você acredita naquelas soluções para aumento de pênis? ». « Oi. Você tem problema auditivo ou é retardo mental mesmo a dificuldade em me escutar?  ». « Você é sempre assim sem educação no trânsito? ». « Você desconhece mesmo como dar prazer a uma mulher, como todos os homens ».

E por aí vai. 

Eu consegui dizer tudo isso aí ao francês com dificuldade de escutar as mulheres. Apesar de eu já ser um pouco assim antes, a maturidade, pra não dizer velhice, mais o fato de morar na França, só agravaram essa mania de querer conscientizar os sem-noção da vida.

Por conta disso, sempre fui muito criticada pelas amigas « mainstream » que diziam « por isso você não arruma namorado ». De fato, tive poucos namorados, casei só uma vez. Mas tive centenas de tentativas. Mas é que para ficar comigo o preço inegociável é o seguinte: me tratar bem.

Aí o rôlé desanda. Pois tratar bem uma mulher é moeda de muito pouca circulação no mercado de capitais masculino. Tratar bem é confundido muitas vezes com tratar como um ser sem autonomia, confundido com tratar alguém com necessidades especiais. E não é nada disso, senhores.

Tratar bem é simplesmente o reconhecimento de que vivemos muito bem (por vezes até melhor) sem um encosto-vivo ao lado. Tratar bem é entender conquista na base da troca e da paridade. Em outras palavras: é demonstrar a cada dia a honra de ter escolhido uma mulher que também está com o senhor por escolha e nada mais.

E como não tem sido assim no geral, aí a independência (financeira e emocional) acaba por levar as mulheres desta casta (pois sim, são privilegiadas as mulheres com o luxo de poder fazer escolhas) a muitas vezes preferirem ficar sozinhas.

Mas a gente morre tentando, nem que seja por um chamego fast-food. E então, estava eu mais uma vez gastando meu latim na tentativa de plantar uma semente feminista no solo wasp (dá uma googladinha, vai). E depois de me escutar sem dar um pio, achei que o candidato a mané fosse sair correndo. Surpresa.

– Você tem uma coisa muito diferente de todas as mulheres com as quais já encontrei.

– Sei, meu sotaque bizarro 

– Não. Você transmite liberdade pelos poros. Não sei se sei lidar com uma mulher tão livre. Permite-me tentar? 

Não fosse pelo distanciamento social, teria até dado um french kiss. Na impossibilidade, marcamos um novo encontro. 

Falou mais alto a curiosidade em saber o que o malandro vai fazer com essa tal liberdade…

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1 comentário

  1. Amei seu texto.
    Muito bom!
    Parabéns
    Saudades Alma boa.
    Bjs
    Anna Pauloú