Fazendo amizade fácil

Amizade não se faz, se reconhece. Não lembro bem onde li essa frase. Pode ter sido tanto no parachoque de um caminhão quanto em algum livro de um célebre autor. Ou, quem sabe, trata-se do refrão de alguma muísca?

Caso eu tivesse o alcance necessário de leitura desta crônica, talvez aparecesse alguém reivindicando a autoria. Mas mesmo sem contar com isso, sigo com a citação como impulso para iniciar mais uma das digressões de expatriados.

A clássica pergunta ouvida sempre por quem deixou sua terra natal é: já fez amigos aí? Uns querem saber dos amigos no geral, outros são bem mais específicos, questionando sobre as amizade com gente local. A indagação, aparentemente simples, costuma mexer com a alma do imigrante. Seja ele de qual categoria for.

Isso porque, ao optarmos em deixar uma vida em nosso lugar de origem, seja lá onde for, seja por qual motivo for, existem buracos a serem preenchidos. Uns carregam mais carências que outros. Mas mesmo o mais bem resolvido emocionalmente dos seres humanos percebe-se instável em alguma situação, na qual uma boa companhia para uma troca de ideias, confidências ou mesmo aproveitar o tempo de lazer faz falta.

Quem chamar? Quem convidar? Ah, tem aquela colega simpática do curso, vou chamá-la para uma soirée e apresentá-la a outros amigos. Ah, tem também aquela compatriota recomendada por uma amiga do Brasil. Vou ligar para ela. Hum, e que tal um café com aquele um outro amigo, que veio passar férias aqui e conhece alguém que mora aqui na cidade?…

As situações são inúmeras, mas a busca pela socialização é uma só. Nestas pequenas atitudes de tentativa de integração, abrimos sorrisos, portas, segredos e a caixa torácica. Pois se há uma certeza ao desembarcamos na nova vida é que chegamos munidos de mala, mochila, expectativas e outra característica ímpar: o peito aberto.

Seria isso algo a ser louvado, não fosse o fato de a saudade, misturada à ebulição que o desprendimento das raízes causa, levar à infortuna troca do verbo “reconhecer” pelo verbo “fazer”.

O tal “fazer amizade” vira mais um dos processos na adaptação dos estrangeiros. Já vi mesmo os mais fechadinhos dos viventes deixarem a porta encostada a quem quiser entrar. Os abertos ao novo por natureza, esses escancaram o portal e saem promovendo todo mundo a melhor amigo de infância.

Eis a problemática. É um tal de pessoas – sem outras afinidades que não a vida fora de casa – criando laços tão frágeis, que não sustentam uma instituição sólida como a real, pura e verdadeira amizade. Ao colocarem o carro na frente dos bois, o resultado é intimidade estabelecida antes do afeto. Muito comum na vida de um imigrante.

Não se reconhece um amigo em risadas num café com vista para a torre Eiffel. Isso é fácil. Reconhece-se amizade quando existe um único pedaço de pão, que não pode ser dividido, há cinco pessoas com fome e o pão é deixado para trás, porque se não podem comer todos, não vai comer nenhum.

Mas com os olhos da alma anuviados, seja pelo deslumbramento, seja pelas dificuldades, tudo é mais complexo. Poderia dizer hoje, sem medo de errar, que o mais complicado da vida de imigrante não é arrumar trabalho, ou aprender a língua, ou se familiarizar com os códigos de conduta. É reconhecer amizades.

Amizade é uma construção sólida. Não defendo que o processo precise ser demorado, apenas faço um sinal para os riscos de confundirmos companheiros com amigos. Boa companhia se faz em qualquer lugar, amigos se reconhecem em paisagens mais raras.

Amizade não se força, não se impõe e nem se conquista. Isso é coisa para relações de interesse ou entre manipuladores e manipuláveis. Amigo não se faz porque alguém diz “você precisa conhecer o fulano, ele também é brasileiro.”. Não, não se desenvolve amizade por causa de nacionalidade.

Amizade rima com lealdade. Com generosidade. E não com elogios constantes ou presenças sufocantes. Amigo não se cala diante de um defeito seu e nem usa o seu defeito na hora conveniente para “ganhar a discussão”. Amigo não se atura, amigo se estima.

Amigos apresentam os amigos a outros amigos, porque gostam de semear as boas colheitas e porque são autênticos. Ou porque não temem serem pegos em contradições. Amigos não se apropriam e nem agem como camaleões. Ninguém precisa fingir gostar do que eu gosto para ser um verdadeiro amigo.

Amigos não recontam suas histórias, sabem guardar segredos e respeitam seus momentos a sós. Amigos compartilham risadas e nunca entram em disputas. Dizem claramente “eu também quero isso, mas, engraçado, vou tentar conquistar, mas torcendo por você”.

A solidão de uma vida dura fora do país de origem distorce um pouco os valores do nobre sentimento. Os amigos que ficaram não compreendem muito bem a nossa ausência, os amigos “feitos” de um dia para o outro resistem por um tempo e uma hora ou outra tornam-se inconvenientes.

Mas apesar dos percalços, ainda consigo achar melhor um peito aberto, com risco de algumas topadas, a um escudo protetor e risco de uma vida amarga. Botando a intuição para trabalhar e indo devagar com o andor, vamos conseguindo reconhecer os bons amigos.

Com isso, desenvolvi amizades interessantes, sem cobranças, com respeito aos pensamentos distintos e com compartilhamentos generosos, sem onipresença. Grande parte com gente com quem mal dou conta de encontrar, mas sabemos que estamos ali, podendo contar uns com os outros.

Porque, nessa vida em terra estrangeira, se tem uma coisa a qual também aprendemos é a nos defender de falsos amigos e de gente inconveniente, que querem estragar o prazer de se morar em Paris…afinal, como diz a citação que acompanha a fofo desta crônica

“A amizade, assim como o vinho, fica melhor com o avanço do tempo. E poderemos sempre ter vinho antigo, amigos recentes e novos interesses”

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