Mais perto dos deuses

O cenário é completamente diferente daquele deixado para trás. Rumo à inacreditável Índia, um grupo de estudantes de uma célebre universidade parisiense, a maioria franceses e com média de idade de 22 anos, parte num domingo ensolarado pelo aeroporto Charles de Gaulle. Na bagagem, roupas leves, um roteiro bem preparado por um professor de antropologia para lá de experimentado na história desta parte da Ásia e muita curiosidade.

Fazia tempo eu não seguia em uma excursão estudantil. Muito menos quando eu sou tão aluna quanto qualquer outro e ao mesmo tempo sou mais velha até que o professor. A interação entre pessoas já seria uma experiência e tanto. Mas a descoberta de um país com características tão marcantes é algo para restar impregnado nos cinco sentidos, para o resto da vida.

Como tatuagem, a Índia vai tomando forma aos poucos, através de pequenas picadas, em cada um de seus visitantes de primeira viagem. No aeroporto, o vento quente, às 2 horas da manhã, me remete ao meu Brasil tropical, mas surpreende os jovens europeus ao meu redor. Nunca souberam o que é calor de madrugada. O guia contratado pelo professor não chegou de microônibus, conforme o combinado, e sim com dois carros. Uma hora de negociação depois, aceitamos partir separados ao hotel.

O trânsito faz o Rio de Janeiro na hora de rush parecer a Suíça. Mesmo de madrugada, a sinfonia de buzinas e o caos imperam. O bairro onde nos hospedamos está longe de ser um cenário apolíneo.

Muito lixo, luzes de neon, ruas sem asfalto, pessoas dormindo em suas carroças ao ar livre. Uma vaca, não, duas vacas comem um saco plástico em frente ao hotel. Elas aceitam um carinho na testa e nos olham com o olhar mais doce já visto de perto.

Ao abrir a porta do local onde valos dormir, o estilo motel da Lapa, no Rio, é quebrado por uma escultura de Lorde Ganesha e por um sorriso temperado pelo famoso “namastê”, o cumprimento traduzido por nós, ocidentais, como “o deus que habita em mim saúda o deus que habita em você”. Eis a confirmação: estamos em outro planeta.

Nada pode mudar meu mundo. Esta foi a primeira das certezas. O Beatle George Harrison entendeu isso nos anos 1970. Claro, ele esteve na India. Nem me atrevo a tentar explicar os motivos de estar no meio de bagunça e sujeira e sentir tanta organização e pureza. Muito menos ensaiarei aqui tentativas de relativizar paz e pobreza.

Porque quando meus ouvidos escutaram a música do templo Sikh, eu só senti uma necessidade de entrar. Ao cruzar a porta e sentar no chão, imitando quem ali estava para rezar, eu só pude chorar. Por que estou chorando? Perguntou angustiado meu coração cartesiano. “Você está chorando de amor”, responderam-me os deuses. Eu os escutei bem. Nunca os tive tão por perto.

Em minha cabeça apenas a sensação de um pleno vazio. A mente cedeu lugar à alma, essa companheira injustiçada do mundo da razão. Após alguns minutos de meditação involuntária, despertei e fui conduzida a um refeitório coletivo, onde homens de turbante serviam uma boa comida, pela qual nada pagamos.

Após a refeição, recebemos a permissão de conhecer a cozinha. Um senhor me ensina a espalhar a massa do pão. Não falamos o mesmo idioma e isso pouco importa. A sua língua é a da generosidade, composta de significados e significantes capazes de serem compreendidos por qualquer um.

Na saída, crianças e adultos nos rodeiam. Pedem fotos com gente de pele branca. Meus cabelos castanhos claros e cacheados, tão ordinários no mundo ocidental, fazem sucesso e uma senhora pede para tocá-los. As relações humanas puras simbolizadas em atitudes que parecem impossíveis nas ruas de Paris. Ou de qualquer outra cidade fora dali.

Após uma semana neste mundo paralelo, não tenho dicas. Muito menos sugestão de hotel. Também não ouso recomendar nossos guias ou motoristas por aqui. Porque a Índia é um lugar sob medida. Para cada um, ela vai proporcionar experiências completamente distintas. Na Índia você é capaz de encher um cachorrinho sarnento de carinho, ou comer no maior pé-sujo do Universo sem sentir nenhum efeito adverso. Ao mesmo tempo, pode ter nojinho da fronha do hotel de luxo. Vai entender…

A Índia, eu diria, é nada mais que a representação da vida em si mesma. Na sua essência, talvez. Cheia das incongruências, mas sempre convidando a aproveitar o que ela tem de bom. Sem se apegar ao passado, sem querer saber do futuro. Simplesmente alertando: dê importância ao agora. E nada mais poderá abalar o seu mundo.

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2 comentários

  1. Gosto demais dos seus textos. Saboreio cada parágrafo. Obrigada por me permitir esta experiência de leitura.