A carta, a dedicatória e o bonde

Segundo dia do mês de agosto. Um mês no qual ninguém – me refiro aos moradores daqui – gosta de estar em Paris. Calor, tudo fechado (inclusive padaria e correio), 70% de todos parisienses de férias…

Parto rumo a mais um dia de trabalho, mas antes verifico a caixa de correio. Um envelope e um embrulho. Uma carta e um livro. A primeira vem de São Paulo, o segundo de Lisboa.

A carta é de uma amiga que teve a delicadeza de escrever a mão, coisas dessas praticamente em extinção. O livro trouxe-me Mia Couto e uma dedicatória de outro amigo também de longa data, e também daqueles com sensibilidade suficiente para se deslocar até os correios e enviar literatura dessas de derreter coração de chumbo.

Muito comovida, chorei de emoção ao ler as mensagens escritas em
caneta esferográfica sobre o papel. Fiquei refletindo há quanto tempo não recebia uma carta. E sobre como livros com dedicatórias são como corpos tatuados: enfeitados de uma marca eterna, só capaz de ser desfeita ao passar outra tinta por cima…

A única vez que morei fora do Rio foi em 1987. Fui fazer um estágio de seis meses em uma cidade do Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina. Eram tempos que até telefone fixo em casa era difícil, que e-mail nem em ficção científica e falar por Skype só nos desenhos dos Jetsons.

Em função dessa minha estada fora da cidade natal, acumulei uma caixa de cartas manuscritas. Considero-me uma privilegiada. Tenho cartas e cartas de mãe, pai, avó, tias, irmãos, amores e tantos amigos, grande parte perdida no tempo.

Incrível dar-se conta de que a minha geração foi aquela que ficou no meio entre o romantismo das dificuldades e o avanço – e consequentemente banalização, talvez – da comunicação.

Morei seis meses em Blumenau e acumulei uma centena de cartas. Moro há três anos em Paris e hoje foi a primeira recebida por correio. Sobre livros com dedicatórias, tenho também uma ligação curiosa.

Eu tinha um hábito de folhear livros em sebos em busca de dedicatórias. Aprendi isso com a minha mãe. Uma vez, em sua pesquisa de mestrado, ela procurava um livro raro do Lima Barreto. Ela encontrou alguns exemplares em uma loja de obras usadas. Havia dois exemplares, ela escolheu o que tinha dedicatória.

Transformou-se em um doce exercício ler dedicatórias e tentar imaginar em qual momento elas foram escritas. Também gosto de cartas antigas, escritas há tempos, cerca de 5 acordos ortográficos atrás…

Sempre me intrigou quem descarta livros com dedicatórias. Cartas também. Fotos, então, nem se fala. E quem frequenta sebos e antiquários sabe do que falo. É surpreendente a quantidade deste material disponível.

Uma observadora da espécie humana inata como eu já teceu verdadeiras teses antropológicas e escreveu dezenas de biografias imaginárias, só olhando para fotos e lendo cartas e dedicatórias. Também a literatura nos recheia de livros sobre o tema.

Dos que li, o mais precioso foi o das cartas trocadas entre meus dois autores brasileiros preferidos: Clarice Lispector e Fernando Sabino. Além da maestria das palavras, ainda havia naquela troca de mensagens uma sedução sutil, velada pelo verbo embevecido da admiração mútua.

Troca de cartas e dedicatórias são a representação concreta da palavra ternura. Onde foi o ponto no qual perdemos o bonde da ternura?

Caso eu soubesse, corria lá e fazia o bonde parar me colocando de braços abertos em sua frente, igual aquele menino chinês da Praça da Paz Celestial, na China, fez em frente a um tanque.

Porque se o bonde passar por cima de mim, tem importância não. Afinal, a humanidade vai perdê-lo ali na frente e tudo ficará mais binário, maniqueísta, sem graça, desumano. Sem melodia.

E aí, amigo, sobra só a plateia do Facebook jogando corações tão automaticamente quanto o “tudo bem” respondido quando nos perguntam “como vai?”. Nos vazios existenciais de nós mesmo, vamos nos preenchendo das solidões alheias em “troca de likes”.

Ao ler as cartas do passado, fico imaginando se trocas de mensagens pelo WhatsApp dariam um livro…

O que salva é que ainda há quem te curta ou te ame além do dedinho no ícone. Ainda tem quem vai além. Quem vai ao correio. Ou vem te visitar. Telefona. Marca um encontro rápido na esquina só para te dar um abraço ou te entregar um pedaço de bolo dentro de um Tupperware.

E assim, através de caixas de correio com conteúdo além de contas a pagar, conseguimos pegar o bonde da ternura.

 

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