Um beijo, um abraço, um aperto de mão

Preciso falar sobre o contato físico. Mas antes, devo esclarecer: o título da crônica de hoje é o mesmo de uma peça de teatro, escrita por Naum Alves de Souza (1942-2016) e levada aos palcos cariocas, em 1986, com Marieta Severo e Pedro Paulo Rangel no elenco. O dado histórico-teatral é somente para dar o crédito e evitar qualquer suspeita de plágio.

Até porque essa crônica de hoje já é inspirada em um texto do jornalista querido Ronald Vilardo, publicado no Medium e intitulado “O fim do aperto de mão” (clica aqui para ler)

Assim como o colega Ronald, reflito sobre isso todo o dia. Já estive na Índia e usei in loco o cumprimento “namastê” juntando as mãozinhas em posição de oração, inclinando-se para frente, sem tocar no interlocutor. Muito legal. Uma saudação respeitosa, cujo significado é bonito: o tal deus que habita em mim saudando o tal deus que habita no outro

Até aí, beleza. Mas confesso que, lá no país asiático, mal eu batia um papo de meia hora com o indiano ou indiana em questão (um povo, em geral, doce e acolhedor com estrangeiros), já me me autorizava a pular na pessoa e dar “aquele abraço” à la carioca. Seria eu uma sinestésica incontrolável?

Nem tanto. Costumo ser bem educada e ter noção de quando preciso segurar meus ímpetos. Além disso, também não tenho vontade de abraçar ou beijar qualquer pessoa não. Precisa, sei lá, ter clima, entende?

Atualmente o fato de saber ser seletiva não é mais relevante. Não conta mais apenas a simples vontade (recíproca, por favor) de tocar o outro. Diante do cenário atual de incertezas sobre a nova normalidade em tempos de coronavírus, só me resta ser fatalista: sentirei falta de abraços, de beijos, de apertos de mãos.

Obviamente, os 6 anos vivendo em uma cidade na qual beijinhos frequentes, apertos de mão sempre, abraços nem tanto, valeram como estágio, ao menos em relação aos abraços. Aqui na França o povo não abraça, mas beija. A ponto de na “firma” chegar a me irritar essa coisa de dar beijinho uns nos outros quando se chega para começar o dia. Especialmente às segundas-feiras. Não bastava um bonjour acalorado, gente? Não. Parece uma coisa tipo “fiquei com saudade dos colega tudo” no fim de semana, sabe?

E agora acredito que irei sentir falta disso também. E sobre o beijo na boca nem se fala…enquanto não inventarem uma camisinha de língua, a gente vai fazer o que? Os namoros avulsos, enfim, essas coisas gostosas de fast food amoroso – que não alimenta muito, mas dá um prazer imenso e momentâneo – devem ser suspensos. Temporariamente, espero eu.

Da beijação do Carnaval ao “french kiss” universal, uma nova ordem amorosa e sexual promete mudanças tão significativas quando a trazida pela a pandemia de Aids há cerca de 30 anos.

Como vai ser exatamente, ninguém sabe.

Receio, no entanto, uma nova onda de conservadorismo. Uma nova onda de preconceitos. Talvez, com solteiros (estes eternos estigmatizados) sendo apontados como “grupo de risco” – o que seria uma hipocrisia em um mundo onde cerca de 60% dos casais afirmam já terem praticado a insídia. (esse dado eu tirei de um artigo da Marie Claire americana de 2015, não lembro do instituto de pesquisa mas cheguei a usar em um trabalho de sociologia na Sorbonne, logo, não é inventado).

Não trago certezas, apenas levanto questões. A liberdade do uso do próprio corpo passa a ter um impacto não mais individual, mas coletivo. E aí a tendência é surgir uma confusão danada. A infidelidade velada (por vezes até consentida para manter a instituição casamento), as relações abertas, o poliamor, os “contatinhos”, o namoro em si e tantas outras formas de amar ainda vão valer a pena?

Sexo é bom. Amor também. Sexo com amor melhor ainda. A problemática de tudo é esse freio ao nosso direito a tentativas e erros, até acertar. Ou não acertar nunca. Porque o tal “acertar” já fora absolvido da eternidade desde a lei do divórcio e dos métodos anticoncepcionais. E feliz de quem tem a permissão em adotar a máxima do infinito enquanto dure. Porque, se durar, ótimo. Caso não dure, que venham novas oportunidades.

No momento não podemos nem beijar o bochecha da avó. E aí, temo por duas possibilidades: condenação a relações infelizes ou solidão voluntária. Aos que hoje livraram-se da obrigação de ter ao lado a alminha gêmea, virá um cerceamento por nós mesmos? Os encontros iniciados pelos aplicativos serão marcados nos laboratórios medicais de testes? A excitação de um resultado negativo ao covid-19 valerá como preliminar?

Enquanto isso, espero que ao menos os casais já existentes e formadinhos debaixo do mesmo teto estejam aproveitando o momento para olharem-se e redescobrirem seus desejos mútuos. Tocai-vos uns aos outros! Em homenagem aos que dispõem apenas de suas próprias mãos.

Porque aqui do alto da minha liberdade, receio que as relações erótico-afetivas, que já eram tabu, agora passem a ser ainda mais enquadradas dentro de normas. E julgadas.

Mas havemos de encontrar saídas e, quem sabe, uma nova revolução sexual nessa era de aquário.

Ou replicantes com a estampa de Ryan Gosling venham nos restituir a glória…

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