“Doidivanias”

Inventei a palavra do título de hoje, inspirada pela leitura do livro “Le Vocabulaire des Philosophes- La philosophie contemporaine (XXème siècle)”. Como já contei algumas vezes por aqui, sentei-me por alguns anos em salas de aula, quando isso era tangível. Cursei a faculdade de filosofia com especialização em sociologia, aqui na Paris 1 Panthéon Sorbonne . Este livro fazia parte da bibliografia indicada. Trata-se de um dos três volumes da coleção dirigida por Jean-Pierre Zarader, que consiste em reunir diversos especialistas (dentre os quais, orgulho em dizer: uma dezena de ex-professores meus) para um mergulho em significantes e significados contidos nas teorias dos maiores pensadores do mundo.

A edição, de 1.101 páginas, convoca os leitores a compreenderem o tratamento dado a determinados vocábulos nas teorias filosóficas mais célebres. Resumindo: em filosofia, cada teórico, de Confúcio a Luc Ferry, trabalhou, acima de tudo, a palavra. O objetivo? Estruturar um discurso capaz de promover a reflexão.

A esta altura, você que me lê até aqui, das duas, uma: ou achou uma chatice, mas está me dando uma chance de o surpreender; ou simplesmente pegou o caminho até este ponto na maior pureza de espírito, atiçado pela curiosidade. Curiosidade esta que, desde os filósofos gregos, é defendida como algo inerente aos humanos.

Veja só você o Platão. Menciono o sábio grego de maneira muito superficial, apenas para tocar na gênese da busca do saber. Bem grosseiramente, o saber para Platão existia antes da existência. Explico: a grosso modo, a divindade seria a matriz de todas as coisas e caberia a cada um de nós o esforço de acessar este mundo real. Lembra do famoso mito da caverna? Ficar só olhando as sombras afeta nossa visão quando nos deparamos com a luz. O golaço de Platão foi legar para a humanidade o conceito, tão atual, de que é muito mais confortável não encarar a realidade de frente.

Não sou filósofa, apenas tirei um diploma da ciência que, aqui onde moro, ainda é coisa levada a sério. Por isso eu não tenho a pretensão de, como no livro citado no início desta crônica, criar um vocabulário “cardosiano”. Apenas quero brincar com as palavras. E propor o termo “doidivanias” em substituição ao termo epifania.

Vamos começar com a palavra epifania. Ela é utilizada para se referir a um súbito pensamento inspirador e iluminado, que promove a compreensão de alguma coisa. Já « doidivania » é uma palavra inventada por mim, durante uma epifania. Parti de doidivana. Palavra já existente e que é um substantivo para definir alguém extravagante, excêntrico, que age de maneira imprudente e despropositada. Então, « doidivania » seria o ato de ser doidivana.

Não sei se eu é que estou na contramão, mas enxergo hoje um mundo a despedaçar-se em rupturas de velhos padrões, enquanto os doidivanas insistem em segurar os pilares de uma normalidade insustentável. Está aí, perceptível até a olhos cegos. Mas ainda insistimos em olhar as sombras. Para usar uma metáfora, é como passássemos a realidade em papel carbono, reproduzindo-a em mimeógrafo, quando o planeta já dispõe de impressora 3D.

Há quem ande tentando explicar o inexplicável. Assim, acabam trazendo ainda mais incompreensão ao que já seria incompreensível à luz de qualquer razão.

Por exemplo, é pura “doidivania” os profetas do marketing de oportunidade a oferecerem “solução para sair da crise”. Porque eu os percebo como entidades surgidas dos esgotos dos algoritmos, apenas para poluir nosso ecossistema virtual. “Doidivania” seria também um termo adequado para definir as desavenças por picuinhas, coisinhas pequenas mesmo, em meio a um confinamento, a um mundo com mais de 2,5 milhões de casos de uma doença pela qual nem cientistas renomados botam a mão no fogo.

“Doidivania” seria ainda um modo para definir essa moda de justificar cada ação contrária ao mundo real do momento, usando argumentos do mundo anterior. Gesto o qual assemelha-se muito à caverna de Platão. Tipo « eu peço pizza em casa pra fazer o entregador ter emprego ». Eu não, amigo. Estou apenas com vontade de comer pizza mesmo. Porque atualmente entregador de comida nem empregado é. E, talvez, seria mais eficaz depositar diretamente na conta do entregador o dinheiro pago pelo meu pequeno luxo em domicílio, caso minha ideia fosse somente fazer o moço manter a renda. Ele ganharia até mais e não precisaria sair de casa. « Ah, mas e a logística disso? ». Difícil mudar, não é?

E isso não é julgamento. Apenas um convite a uma reflexão. Admitir simplesmente que nosso propósito ao pedir pizza não é ajudar ninguém e sim apenas comermos pizza é um passo importante para não cairmos em “doidivanias”. Não podemos ir à pizzaria, pois ela está fechada. Então, agradeçamos pela pizza a materializar-se em nossa mesa através de alguém expondo-se ao vírus. E isso vale para o caixa do supermercado, o motorista de ônibus, o médico que vai nos tratar no hospital, mesmo sem máscara ou luva.

Porque “doidivania” serve para usar quando na verdade não estamos a fim de mudar nada e vamos adaptando a vida e justificando nossos atos por argumentos galgados em um mundo ao qual nos habituamos. E para o qual estamos doidos para voltar “quando tudo isso acabar” (sic). Porém, enquanto aguardamos, « show must goes on ». Ou, em bom português, “a economia não pode parar”.

Para finalizar os devaneios, “doidivania” cairia muito bem também para explicar os argumentos de um chefe de Estado, que, em meio a uma pandemia, faz um discurso no qual, entre outros absurdos, lamenta o fato de precisar nadar em uma piscina gelada, expõe ao ridículo o único filho do gênero masculino que não ocupa ou ocupou um cargo público e ainda, numa afronta megalomaníaca aos humildes, menciona ter cartão bancário que lhe permite sacar 25 vezes o valor do salário mínimo de seu país.

Diante destas sombras, tento fugir da caverna e me refugiar na luz do livro de cabeceira. A você, bravo leitor ou leitora, resistente e capaz de chegar até o fim deste texto, vou contar-lhe algo que talvez você não saiba: pensar não é isso que nos ensinaram. Não é decorar explicação da Wikipédia. Não é lacrar. Não é ter opinião formada. Pensar é um ato somente possível através do exercício contínuo, diário, e, de preferência, orientado por diversas fontes idôneas.

Pensar é levar suas ideias para brincar com outras no parquinho e sempre renová-las. Pensar é tocar com luz a atmosfera da masmorra profunda onde habita a nossa ignorância. Pensar é desconfortável como a luz batendo nos olhos após muitas horas de escuridão.

Mas eis a boa notícia: sempre há tempo para começar o exercício do pensamento.

E isso não é uma « doidivania »…

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2 comentários

  1. Infelizmente estamos num período em que a “lacração” substiuiu a reflexão na sociedade e nos setores mais importantes dos nossos governos. Texto brilhante, Ana Paula. Grande beijo, Ed