Carta ao filho que não veio

E aí, filhão?

Esperei tanto, mas tanto mesmo, a melhor hora que acabou não dando para você vir. Mas não se chateia não, daqui deste mundo não perdeste muita coisa…

Ontem mesmo saiu uma pesquisa sobre as próximas eleições. Nem valia a pena você estar aqui pra ver isso…Ainda tem umas outras coisas medonhas. Como dizia uma antiga música, “está cada vez mais down no High Society”. Quanto mais comida no prato e quanto maior o metro quadrado da moradia, mais as pessoas só pensam em si mesmas. E agora tem um negócio aqui chamado de rede-social, uma espécie de desfile de egos desinteressantes e desinteressados.

Mas tem coisa boa também. Teve um Carnaval bonito esse ano no Rio de Janeiro. Com pouco dinheiro, pipocaram críticas na avenida e surgiram mais uns blocos irreverentes, com muitas crianças. Caso você estivesse na Terra, iria carregá-lo nos ombros para dar uma olhada bem ampla.

Ah! E aqui onde estou ainda por cima foram campeões do mundo de futebol. Poxa, fizeram uma tremenda festa. A Champs-Élysées tava linda. Eu teria te vestido com uma camisa do Mbappé e a gente ia cantar a Marseillaise com a multidão. Tem também o fato de ser fim de verão em Paris. Os jardins ainda estão floridos e o sol anda presente, mas a temperatura já baixou e já vemos as folhas amarelinhas do outono enfeitando as árvores.

Nessas horas sinto a maior falta da não ter você para empurrar no carrinho ou ensinar a andar de bicicleta. Ou para me acompanhar aos museus e me ensinar sobre os quadros e tudo mais aprendido com a professora da escola. Quem sabe até você me faria companhia no bar, quando já crescido. Tomaríamos uns vinhos juntos, brindando à sua maturidade. E à minha velhice ainda lúcida.

Bem, se você tivesse chegado, talvez eu nem estivesse em Paris. Mas quem está interessado na linearidade da história? Isso é para os acadêmicos. Aqui entre nós, eu consigo me imaginar pegando a nau e atravessando o oceano contigo enrolado e grudado no meu corpo. Ou apenas de mãos dadas. Ou até já me ajudando a carregar as malas. Ih, a gente iria se virar bem. Você ia me dar ainda mais força pra não desistir.

Sim, eu sei. Muitas vezes eu teria vontade de te enviar por Fedex para a Lapônia. Ao mesmo tempo, certamente já estaria arrependida cinco segundos após pensar isso.

Acho que foi a maior bobeira esse negócio de querer um cabra legal pra me ajudar a te trazer pro mundo, viu?Deu nessa ausência. Homem atrapalha de vez em quando, sabe? Até para a ação não concretizada, atrapalha…acabei sendo certinha demais e perdi o trem de onde você viria.

Agora já foi. Não, não me arrependo não, nem se preocupa com isso. Viu quanta coisa eu fiz? Quantas viagens, mudanças de ideia, de profissão, boas horas de sono, um monte de cursos universitários, falar tantas línguas e muito mais tempo pra fazer tudo. Ou fazer simplesmente nada. E ainda teve os romances, muitos dos quais não arriscaria viver se você tivesse vindo.

Aproveitei sim isso a que chamam liberdade. Nossa, cada minuto foi aproveitado. Nem se inquieta. Tá, alguns romances não me fariam a menor falta. É. Também uma vez ou outra eu fiquei bem sozinha. Acordei de madrugada, nas insones e vazias noites sem choro, fralda ou leite para dar. Mas foram poucas vezes, fica tranquilo. Até porque, de tranquilidade eu entendo. Você não vindo eu só tive noites tranquilas, sem aperto no coração, angústia ou preocupações.

Mentira. Tive sim. Muitas dores. Dores profundas da existência e do mundo injusto ao redor. Mas eu não tinha o direito de tê-las. Ao menos é assim aqui nessa dimensão, sabia? Sabia que sem você ter vindo meu direito é limitado? É sério. Rapaz, você nem imagina. Não posso reclamar de estar cansada, preocupada, sem tempo. Sem você é como se eu não soubesse o que é isso, me dizem o tempo todo as mulheres com filhos.

Embora a vida de muitas mães seja bem difícil, a sociedade endeusa a maternidade. Ter optado por não te receber não me deu esse lugar no Olimpo. Mas é possível viver como mortal comum, não esquenta a cabeça.

Olha, preciso confessar: sinto saudade de quando eu sonhava com você. Quando essa possibilidade ainda era viável. Sempre tive vontade de saber como seria carregar um ser vivo dentro da mim. A mulher deve sentir-se meio bicho, não é? Coisa louca, tipo aquele filme Alien. Não ri não, vai. Divagações de quem nunca passou por isso.

Também tenho nostalgia dos devaneios com você ouvindo minhas histórias. Eu sei, eu já contei história pra tanta criança que já perdi a conta, mas dizem que pra você seria especial, vai saber…

Agora só mais uma coisinha. Eu nem ia te incomodar com isso, mas sou obrigada a falar. De toda essa sua ausência, tem uma coisa muito desconfortável pra mim: é o olhar de pena de quem acha que fui fracassada por não ter feito você chegar. Ah, eu sei que não devo me importar com julgamento dos outros, mas eu fico pensando se você também não sente pena…pena de não ter vindo, pena porque não nos conhecemos, pena dessa negação da existência que é o não-nascer, o não-procriar…

Tá… a gente combinou de não chorar. Mas você sabe como eu sou assim, emotiva. Com toda essa casca de forte, você sempre me enxergou com estes teus olhos de raio-x. Pronto. Passou.

O que espero do futuro? Ah, nem sei. Já não há muito futuro, não é? Ele já é menor que o passado, de acordo com a expectativa de vida prevista pelo IBGE. Não vai ser muito diferente do presente não, eu acho…a gente aprende a se aceitar e a viver dentro das circunstâncias apresentadas, sabe? Não é conformismo, não, filho. É sabedoria. A gente só precisa amar, ajudar os outros e ser feliz. Lições de Buda. E eu teria te ensinado a ser assim, certamente.

Preciso ir, meu filho. Fica bem onde você está. Se eu acredito em prolongação da vida? Se a gente ainda pode se encontrar? Acho que sim, né? Bora acreditar nisso? Então tá. A gente ainda se encontra. Em outras vidas, nos sonhos, nos olhares e sorrisos das outras crianças, na afetividade dos filhos do companheiro. Te amo, meu bem. E muito obrigada por ter sido sempre tão compreensivo.

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