La Rentrée: quando entrar setembro em Paris

Foi no primeiro dia de setembro, da remota década de 90 do século passado, a primeira vez que pisei em Paris. Um sonho aparentemente distante para a garota proletária, de 20 e poucos anos e criada no subúrbio, tornava-se realidade graças a uma coisa chamada trabalho. Era uma época na qual a palavra meritocracia não tinha virado palavrão e ascender através de estudo, esforço e talento profissional ainda era possível.

Eu já dividia o aluguel mesmo morando com a família (foi a maneira encontrada para morarmos na Zona Sul), mas uma promoção e as horas extras (também era um tempo no qual as empresas pagavam horas extras) – além da estabilidade econômica que parecia ter chegado ao país – permitiram uma economia de um ano para fazer a tão almejada viagem.

Ao sair do aeroporto para pegar o famoso ônibus da Air France, que levava de graça os passageiros aos pontos centrais da cidade, ajoelhei-me e dei “um selinho” no chão. O gesto fora uma promessa. Imitaria o usual beijo no solo que o então papa João Paulo II concedia às novas terras onde pisava no dia em que meus pés tocassem o chão de Paris pela primeira vez.

A icônica Cidade Luz já estava desenhada em minha mente como um mapa, mas deparar-me com as paisagens reais causou-me sensação inédita. No melhor estilo “Rosa Púrpura do Cairo” (filme obra-prima de Woody Allen no qual a personagem central entra em um filme através da tela do cinema), senti-me como se tivesse passado para uma outra dimensão.

Em tempos nos quais o 3D não era corriqueiro, o portal da terceira dimensão aberto nessa primeira viagem à cidade teve ainda um elemento a mais: era o primeiro dia da volta das férias parisienses, a famosa “Rentrée”.

Como já lembrei em outras crônicas, julho e agosto (principalmente agosto) são meses quentes e meio sem-graça por aqui. A debandada geral dos seus moradores, que migram qual aves no inverno, deixa um vazio esquisito e uma tristeza desértica na Paris normalmente agitada.

Portanto, ter chegado praticamente no mesmo dia no qual os parisienses voltam de suas viagens de verão foi como entrar na festa quando o DJ toca Glória Gaynor, já cheguei no ritmo esfuziante de sorrisos, vestidos e pernas de fora com bronzeados à mostra. Varandas de cafés lotadas de gente contando, em voz excitada, a última aventura veraneias.

Como não se apaixonar por uma cidade cuja luz dourada de um sol já tímido, mas marcando presença no último mês de sua estação soberana, fazia resplandecer monumentos e gente? Tombei aos encantos da cidade e seus moradores sorridentes.

Uma semana depois, pegava um trem rumo a outras cidades europeias, mas com meu coração enterrado ali à margem do rio Sena, em um pique-nique à beira do Sena. Pensar em morar na cidade era um devaneio assaz ousado para deixá-lo vir à tona. Reprimido por longos 25 anos, voltei para desenterrar o músculo involuntário e resgatá-lo agora.

O coração já não é o mesmo. Carcomido pelas marcas de muitos tombos, pelas cicatrizes das feridas profundas da desilusão e pelo enrijecimento após as experiências, já coabitam, lado a lado com as batidas, um tanto da poesia e um monte da realidade sobre a vida parisiense.

Também já não há ônibus de graça do aeroporto e beijar o chão talvez possa levar a uma leptospirose. E os meses a mais passados entre os parisienses  já derrubaram a sensação de povo sorridente e espontâneo, deixada pela ingenuidade da primeira impressão.

Mas quando os raios de sol de uma manhã de domingo batem nos espelhinhos em forma de coração pregados na varanda, refletindo na parede do meu quarto, tudo se renova. E eu perdoo o mau humor de seus habitantes, eu rio do cê-cê no metrô e eu vou à padaria assoviando uma canção da Piaf.

Porque quando entra setembro, tudo é mágico em Paris. Pelo menos até o outono chegar.

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