Casei com Paris


Eu fazia a cobertura do terrível atentado de 13 de novembro de 2015. A pauta era aquela mesmice sensacionalista de sempre, imposta pelos criativos (contém ironia) editores dos veículos de imprensa: encontrar brasileiros para contarem seus dramas.

 Entrevistei uma carioca como eu. Ela estava em um bar na mesma quadra do Petit Camboja na hora da chacina. Ouviu os tiros, reconheceu o som (não há morador do Rio de Janeiro que ignore o barulho feito por um fuzil) e viu um corre-corre. Ela custou a crer na realidade. Ao avistar os terroristas armados vindo em sua direção, jogou-se no chão. 

O resto está na matéria publicada, na ocasião, em um grande jornal brasileiro. Mas em seu depoimento, nunca esqueci uma de suas falas:

– Eu não saí do Rio de Janeiro para passar por isso. Estou voltando para o Brasil.

Na época, julguei precipitada sua decisão. Hoje vejo com outros olhos.

Quando decidimos mudar de cidade, é parecido quando decidimos engatar num relacionamento amoroso. Trata-se de uma decisão na qual a gente se engaja cheio de expectativas, não tem muito jeito.

Porém, quando o assunto é relacionamento com um ser humano, a gente tem consciência – ou ao menos deveria ter – de que a vida a dois está longe de ser um paraíso. No caso de quem embarca para outras paragens a fim de fincar bandeira, a história é outra.

Vejam vocês o que se espera da pobre Paris. Vejam lá a série da senhorita Emília, tão desapontada en alguns momentos mas, como está apaixonada, sempre acha que tá tudo bem. Uma relação abusiva com a cidade escolhida, penso eu no meu excesso de crítica sobre o clássico endeusamento clichê da Cidade Luz. 

No extremo oposto, há os que não aguentam a primeira bufada mal-humorada de um típico parisiense e passam a desqualificar a cidade ou se mandam. No meio termo, tem os que vão tentando se equilibrar entre os prós e os contras, entendendo o quanto também somos responsáveis por essa relação dar certo

Acredito encaixar-me nesse último caso. 

Confesso ter casado com Paris. E casei apaixonada. Nos primeiros anos, o deslumbramento inicial foi sendo corroído pelos arroubos de realidade trazidos pela intimidade. 

Pensei em sair daqui? Ainda nunca aconteceu. Quando o conflito entre mim e a cidade chega a me afetar os nervos ou me causar tristeza, procuro me entender com ela. Olho-a atentamente, percebo o que há em mim que causa essa sensação de desagrado. Ela já mudou muito desde que começamos nossa relação. E isso faz o meu amor crescer cada vez mais, afinal, estamos falando de alguém com mil e muitos anos de vida. E, com essa idade, ainda ser flexível é uma benção.

Em outros aspectos, Paris é categórica e já me confessou: não vai mudar nunquinha. E aí eu me questiono se aquele defeito é por mim aceitável. Um deles é o fato de eu ter noção de estar vivendo uma relação poliamorosa. Afinal, Paris não é só minha.

No quesito recompensas, há infinitas. O brilho da vizinha Mme. Eiffel a cada hora cheia ou uma baguete quentinha com manteiga nacional. A língua tão difícil de se aprender, mas tão rica em proporcionar acesso a textos icônicos no idioma original. E tem o frio gostoso, o vinho para aquecer, o galanteio dos bofes ainda afeitos às delícias da sedução na meia-idade e essa arquitetura de fazer cair o queixo.

No momento estamos numa tremenda crise conjugal: Paris está sem seus restaurantes, museus, cinemas e teatros. E nem por isso passa por minha cabeça abandoná-la. 

Enquanto eu puder caminhar por suas ruas e cruzar suas pontes, nem penso em divórcio. Não é uma pandemia que vai me afastar de um grande amor. Os votos de na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, continuam firmes e fortes. 

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