O crime do feijão

Tudo estava calmo no confinamento. Viveres suficientes para a manutenção do corpo obeso. Papel higiênico suficiente para uma única bunda. Nenhuma crise, talvez pelo fato de já estar acostumada a trabalhar de casa.

Mas eis que no terceiro dia de clausura, alguém posta no grupo de WhatsApp, em plena hora do almoço, sua panela de feijão preto fumegante. Pronto. Todo o equilíbrio razoável de uma pessoa criada para ter consciência das coisas, e evitar ao máximo ser sem noção, caiu por terra.

Aquele feijão recém saído do fogo, com cara de estar quentinho, acionou meus instintos mais primitivos. O bicho enjaulado sucumbiu ao mi mi mi estilo « classe média sofre » e desejou, invejou, sentiu-se desamparada por não ter uma panela de pressão, muito menos com feijão fresquinho dentro dela.

Ainda desorientada pela minha carência, respondi em tom jocoso « postar feijão preto e farofa em tempos de quarentena é vandalismo! ».

A galera riu, eu também. Mas por dentro, só nós sabemos quais são os sentimentos aflorados por um simples feijão. A Pátria Amada distante. O afeto das casas de vó, mãe, tias e mães de amigos. O caldinho maroto das academias da cachaça Rio a fora. Eu sofri. Problemas de pessoa rica, diriam os ativistas. Assumo. Mesmo não sendo rica, tenho meus momentos de desejar o supérfluo.

Resolvi tentar me distrair voltando a ser intelectual. Agarrada  num livro da Simone de Beauvoir, do qual não consigo sair da página 11, o telefone anuncia mais uma mensagem. Pego para desligar e me concentrar na leitura, quando sou surpreendida pelo texto:

— Hoje vou fazer feijão com linguiça. Descolei até couve. Tem farofa, pão de queijo e molho à campanha. E se na hora que eu estivesse passeando com o cachorro você passasse para fazer sua corridinha e pegasse um pacote?

A amiga, separada de mim por uma ponte  sobre o rio Sena, faz a proposta subversiva. Eu dou uma gargalhada. Mas aceito a missão. Combinamos minuciosamente como seria a logística. Claro, tudo funcionou mais como M.Been do que James Bond, mas enquanto eu fazia carinho em seu cachorro (ainda bem que os bichos podemos acariciar!) ela deposita uma bolsa de papelão da Dior, cheia dos produtos do bom, melhores que bolsa de couro com sininho.

Fui transgressora. Poderíamos ser presas. Julguem-me ou condenem-me, tudo bem. A polícia tinha passado 3 minutos antes do crime. Seríamos multadas, talvez? Mas em tempos de escassez de afeto, de contato e de abundância de incertezas, Paris foi testemunha de uma desobediência civil. Tudo por causa do feijão. 

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3 comentários

  1. 🤣🤣🤣
    Morrendo aqui. De rir, mas morrendo. Que o riso e a solidariedade sejam sempre mais contagiosos!

  2. Pois é, uma dessas criminosas é minha filha que, arriscando-se ser presa, preferiu cuidar daquela amiga tão sedenta de carinho e uma comidinha tão brasileira. Em raríssimas vezes o crime compensa. Bjs, use e abuse dessa amiga que veio a esse mundo para se do bem; linda, simpática, acolhedora, sábia, enfim, sorte minha que fui escolhida pir Deus para ser sua mãe.

  3. Gostaria muito de poder criar com as palavras textos pelo menos “um decimo” do que são os seus. Amei, como sempre amei todos. Coincidentemente fui à rua comprar um remédio para minha mãe e ao deixar com ela, recebi feijão em troca! 😉
    Cuide-se e quando tudo isso passar e você vier ao Rio, iremos a uma feijoada! Beijos