Intimidade

Reza a lenda que durante uma entrevista, a repórter perguntou ao então presidente Jânio Quadros se poderia lhe fazer uma pergunta íntima. Ele, com seu raciocínio rápido e jeito excêntrico, teria respondido “Minha cara, intimidade só leva a duas coisas: filhos e problemas. Como não pretendo ter nenhum dos dois com a senhora, melhor evitar a pergunta”.

Intimidade é uma palavra forte. Em tempos de privacidade escancarada nas redes sociais, preservá-la parece não ter mais sentido. Ao mesmo tempo, grande parte das pessoas mundo afora tremem de medo em compartilhá-la. Digo no sentido de tornar-se íntimo de alguém.

Intimidade é roncar ao lado. É ir ao banheiro sem constrangimentos ou passar o aspirador de short desbotado e camiseta velha, sem estar preocupado se vai perder o sex appeal (ah, se as pessoas, principalmente as mulheres, soubessem realmente onde mora seu sex appeal… parariam ontem de querer ter “barriga negativa” ou gastar rios de dinheiro no Segredo da Vitória).

Intimidade é poder queimar o único pão para o café da manhã, quando está nevando lá fora, ficar p… da vida e blasfemar enquanto o íntimo ali presente também reclama de você, mas no fim riem juntos e comem ovo mexido com cream cracker, prometendo abastecer o freezer de baguete congelada da próxima vez.

Mas não há só filhos e problemas na intimidade. Há o bônus de conhecer o percurso alheio de olhos fechados. Embora seja bom deixar as pálpebras abertas para os ônus. Porque intimidade é nada mais do que ver de perto. Enxergar a olho nu aquilo que os não-íntimos só conseguiriam ver através de microscópios.

Intimidade leva tanto às indecentes remelas no olho pela manhã, como ao conforto de um sexo em cadência lenta, às 5 da tarde, depois da siesta de domingo, minutos antes de ver o Neymar defendendo o PSG pelo canal de esporte.

E nem só de pessoas ficamos íntimos. Também podemos colher frutos e enfrentar as adversidades consequentes da intimidade com uma cidade. Tenho uma grande amiga que costuma dizer “Morar em Paris estraga Paris”. Na verdade, o que ela quer dizer é que ser íntima da cidade mais icônica do planeta traz à tona questões completamente despercebidas aos olhos dos visitantes aleatórios.

O mau humor do garçom pode ter seu charme para contar às gargalhadas numa mesa à beira mar no Rio, depois de uma estadia de uma semana na Cidade Luz. Mas enfrentar isso dia a dia cansa, machuca, irrita. Isso é intimidade. Intimidade é estar presente sem maquiagem, sem o véu do deslumbre. É encontrar o “ratatouille” passeando no chão do seu café preferido e até achar “normal”. É já não considerar o metrô, com quase 20 linhas e centenas de estações, o transporte mais legal do mundo, com seus atrasos e os mal-educados usuais em todos os transportes coletivos de grandes cidades.

Em compensação, intimidade também é sair da biblioteca depois de exaustivas 8 horas estudando uma matéria que você não consegue entender e dar de cara, literalmente, com a torre Eiffel piscando para você. Ou dar informação a uma horda de turistas americanos procurando um hotel que estava ao lado, mas o aplicativo deles insistia em manda-los para a filial da rede em Los Angeles.

Intimidade é saber usar a bicicleta fornecida pela prefeitura, que, aos olhos do visitante ocasional, parece requerer formação em engenharia na Nasa para entender como funciona o sistema. Intimidade com uma cidade é ter um bar ao lado de casa onde os garçons te chamam pelo nome, dão beijinho e chorinho de cerveja se a gente fica até fechar. Ou ouvir dos amigos que visitam “Nossa! Jamais conheceria este restaurante- museu- jardim- passeio- loja- vinho- prato se não fosse você! Nada como estar na companhia de um local!”

Intimidade é ficar de saco cheio e fugir nas férias, para depois voltar morrendo de saudade e sentindo-se no seu lugar. Intimidade é olhar a Notre Dame e repetir mil vezes “Paris, é com você que desejo ter filhos e problemas até que a morte nos separe”.

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