O tal novo normal

Tenho um jogo de toalhas comprado há 20 anos. Eu era casada, com um homem que me considerava perdulária por comprar meus jogos de cama, mesa e banho em lojas consideradas caras. Por ele, Casa e Vídeo (existe ainda essa loja?) estaria muito bom para adquirir objetos de casa.


Comecei a pensar sobre consumo enquanto enxugo-me, em Paris, com uma das toalhas do espólio de um divórcio de 14 anos atrás. Quais fatores levam uma toalha a durar 20 anos sem desbotar, mantendo-se macia e aderente? Enquanto outras em seis meses não servem nem mais para enxugar o chão?

Ah, a cadeia produtiva… sem entendê-la nunca existirá o consumo consciente.

Volto à realidade vestida e crua. Saio de casa para o primeiro deslocamento, além de um quilômetro, após 55 dias sem “botar o nariz pra fora”, como diria minha avó. Ao deparar-me com filas em uma loja de roupas (de uma marca diversas vezes denunciada por utilizar mão de obra escrava), vem à mente uma música do Léo Jaime 🎶 ô ô ô ô ô nada mudou🎶

Mais uns passos e estou na Rue du Commerce. Como o nome autoexplicativo indica, trata-se de uma extensa via onde se concentra um número considerável de boutiques conhecidas. As pessoas precisam comprar sapatos, afinal, voltamos a andar.

Vejo os bares e cafés adaptados à tal nova realidade. Fizeram barricadas com mesas para ninguém entrar, transformando as entradas em balcões onde pode-se comandar bebidas e petiscos. O povo fica em pé na calçada, bebendo, papeando e desrespeitando o distanciamento social. Gente, eu me vi no Rio com seus botecos em cada esquina.


Minha cabeça vai julgando as pessoas sem máscara. Acho errado fumar e se abraçar na rua e fazer,fila nas lojas. Ops. Tropeço numa vitrine com sapatos bonitos. Hum, que vontade me deu de comprar essa sandália com salto! Resisto. Mais dois passos, tem uns vestidos em manequins portando máscaras do mesmo tecido.

Eu, com três vestidos e dois sapatos ainda nunca usados no armário, vejo-me prestes a sucumbir ao ímpeto consumista.

Mais uma reflexão. A qual entidade serve a alma humana? Ao Deus Marketing, certamente. Somos tão arraigados àquilo que nos impuseram como norma que um salão de cabeleireiro na França abriu suas portas à meia-noite e um minuto do dia 11 de maio. A dona disse ter uma fila de espera imensa para dar conta, e como só pode receber dois clientes por vez, resolveu abri-lo no primeiro minuto do dia do desconfinamento.


Decido parar de julgar o mundo ao redor. A ruptura com hábitos é tema tratado com seriedade e profundidade. De Hume a Bourdieu, sem entrar nos conceitos. Da neurociência à psicanálise, é consenso: o hábito é a coisa mais difícil de mudar. E as normalidade pinta e borda diante disto.


Aperto o passo, fujo da vitrine e vou parar na Place du Trocadéro. Para quem não sabe, um pedaço de Paris que já não pertencia mais aos parisienses há anos. A horda de ônibus de turismo parados de onde desciam turistas ávidos pelo melhor ângulo para tirar uma foto com a Dama de Ferro afugentava os habitantes da cidade.

Torre Eiffel ao fundo, sorrisos e poses no selfie. E assim caminhava a humanidade até a Terra ser parada por um micro-organismo de nome pitoresco: Covid-19. Passaram-se dois meses de uma Paris sem turistas e talvez isso dure somente um mês. As companhias de aviação e a indústria do turismo já faz pressão.

E se atual sistema financeiro materialista não pode parar, minha curiosidade jornalística também não. E me empurrou até o local que é um marco do turismo mainstream.

Chego na tal praça e encontro finalmente o tal novo normal. Crianças brincando, deslizando em patins ou patinetes pelo piso de mármore entre o Musée de l”Homme e o Palais de Chaillot. Grupos de jovens e velhos tomando sol. Casais maduros passeando. Vi até um típico parisiense sacando o smartphone para fazer uma foto do monumento mais visitado do mundo.

Eu também peho o telefone de bolso. Não para tirar uma selfie, mas para buscar o frevo composto por Caetano Veloso. E ouço a voz do baiano a me dizer:

“A praça Castro Alves é do povo
como o céu é do avião
um frevo novo, eu peço um frevo novo”

Faço imediatamente a paródia: a praça de Trocadéro é do povo.

Voltou a ser do povo. Não sabemos quanto tempo vai durar. Mas se existir de fato um novo normal, que seja o fim do turismo predatório e o resgate das viagens prazerosas. Nas quais os viajantes venham desfrutar a vida local. E não descaracterizá-la, expulsando o bioma urbano original.

( Veja pequeno vídeo com a Olace du Trocadéro no Instagram @cronicasdeparis )

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1 comentário

  1. Adoraria conhecer essa Paris dos parisienses sem: árabes, sem os frenéticos grupos de chineses empurrando, sem o comércio de quinquilharia na Torre,sem inúmeras “bonitinhas” e “bonitinhos” fazendo selfies, deve ser uma visão bem diferente bem mais humana , bem mais poética.