Perspectiva

Por definição, perspectiva seria a maneira com a qual se analisa determinada situação. Costumamos traduzir também como ponto de vista. Olhamos para uma situação bem específica e damos nossa própria representação. A nossa visão de mundo passaria então por nosso DNA e também pelas múltiplas identidades sociais que desempenhamos.

O mundo ao nosso redor seria, então, o reflexo do que somos? Mas quem somos nós? Sou a irmã dos meus irmãos, a mesma que serve café aos moradores de rua parisienses, a jornalista que escreve sobre os acontecimentos em Paris. 

E na minha identidade eu ainda sou filha da minha mãe, mesmo depois de mudar o meu nome de solteira. Considerando o conceito de filiação como um critério específico de identidade, correremos o risco de nos enganarmos. Porque por mais que alguns países  utilizem esse dado para identificar homônimos (considerando que alguém poderia ter nome e sobrenome idênticos, mas ele nunca seria o filho da mesma mãe), podemos estar errados. 

Afinal, há quem descubra, depois de 20 anos, que foi adotado. Assim, o nome da mãe no documento será apenas uma perspectiva formal de uma história individual cheia de nuances. Nesse sentido, tempo, espaço, memórias, tudo se entrelaça numa rede pouco linear ao construirmos nossa identidade. 

Morei 43 anos em um país no qual a data de meu aniversário caía em um dia de outono, marcado por uma efeméride nada simpática: o início de 20 anos sem democracia. Meu pai costumava brincar comigo “Você é mandona assim porque nasceu no dia da ‘Redentora'” (ele usava ‘Redentora’ como deboche, entendam bem).

Carreguei esse desconfortável estigma com uma certa resignação. Após a redemocratização do Brasil, nem em meus devaneios mais loucos imaginaria haver ainda quem acharia conveniente comemorar essa data como um marco histórico, digamos, de orgulho nacional.

Aqui onde vivo, por exemplo, ninguém comemora a criação do chamado Governo de Vichy que, para quem não sabe, foi o governo oficial francês e colaboracionista com o nazismo, que vigorou durante a ocupação da França pelo exército de Hitler. Foram cerca de três anos de entrega aos soldados da Gestapo de crianças, mulheres e homens judeus, negros, gays, portadores de necessidades especiais, ciganos, comunistas ou simplesmente alguém que teve a humanidade de proteger um dos componentes da lista destas “classes” citadas.

Talvez os simpatizantes da ditadura militar brasileira que passeiem por Paris nunca tenham se dado conta das inúmeras placas em metal nas fachadas de prédios. Cada uma delas com informações como a quantidade de crianças retiradas à força daqueles edifícios rumo aos campos de concentração, para serem mortas ou torturadas. Ou dados como nomes de quem resistiu a esta ocupação francesa e acabou dando a vida em prol da causa.

Por outro lado, são poupados os nomes dos chamados colaboracionistas, aqueles que achavam normal o que acontecia ao redor – normal no sentido literal da palavra, de se cumprir o padrão oficial e das leis vigentes. Uma espécie de anistia social, através da qual não se acusa ou joga-se na cara quem contribuiu para o absurdo ao entorno. Ou quem preferiu silenciar. Afinal, o medo deve ser respeitado e o acordo tácito é permitir que ninguém toque no assunto. Talvez seja o jeito francês de absolver os equivocados à maneira daquele famosos líder religioso:  “perdoai, Senhor, eles não sabiam o que faziam”.   

Ao saber que o ocupante do cargo mais alto do executivo do país onde nasci deu a ideia de comemorar oficialmente o dia 31 de março, nem tive forças para ficar pasmada. Pensei primeiro em dar um motivo mais legal para celebrar: o aniversário desta que vos escreve. Mas refletindo bem, seria um ato um tanto cabotino e talvez ele não entendesse a piada. Resolvi então apenas fazer um piquenique no parque. Céu azul de primavera em Paris e nada mais justo do que comemorar mais uma data querida ao lado de outra aniversariante, a Torre Eiffel, que hoje completa 130 anos.

De um 31 de março outonal e marcado pelo início de sangrentos e amordaçados 20 anos, passei ao aniversário combinado com flores e parabéns para Madame Eiffel. Questão de perspectiva.

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