Pernas


Existe uma expressão em português que  nem sei se ainda é usada: “Pernas, pra que te quero ?” Sei que o certo deveria ser “pernas, pra que lhes quero?” Ou “as quero”. Mas confesso: o erro de concordância a faz ainda mais autêntica. A expressão é usada quando sentimos o ímpeto de sair mais rápido possível de onde estamos. Seja por pressa, seja por medo do perigo. 

O desuso do chiste, no entanto, me parece não ser apenas de ordem linguística. O mundo da mobilidade urbana e seus componentes artificiais para o deslocamento me provam isso diariamente. Ao menos em Paris.

Vejam só os senhores. Um tombo besta num domingo chuvoso me levou à emergência do famoso hospital Pitié-Salpêtrière. O  médico de plantão, enquanto avaliava minha radiografia, não resistiu à piadinha “Ah você é brasileira? É irmã do Neymar, por acaso? Pra cair à toa e fraturar o mesmo osso…”

Ri pra não perder o amigo, outro ditado popular cujo significado é associado aos momentos nos quais estamos na fronteira entre dar uma resposta antipática ou fingir-se bem-humorada.  

O médico, em tom de quem me dava uma boa notícia, descartara a possibilidade de cirurgia de emergência. No entanto, deixou claro que a recuperação da fratura à la Neymar exigiria um bom tempo com  imobilização por gesso, consultas a especialistas, fisioterapia, muletas e o pior: a proibição de pisar com o pé direito  durante um mês. 

E a temporária situação de pessoa portadora de necessidades especiais me jogou na cara algo jamais percebido: a Cidade Luz está longe de ser gentil com quem tem restrições à locomoção.

Para começar, esqueça o metrô. São raras as estações com elevadores, o espaço entre o trem e plataforma vira um obstáculo olímpico para quem precisa usar muletas e o apito neurótico da porta,  avisando “eu vou fechar e esmagar sua perna, que ainda está do lado de fora do vagão”, é só um componente a mais na adrenalina. 

Quem não tem orçamento para comprometer em táxi diariamente, ônibus então é a solução. O peso do tempo gasto no trânsito com esse transporte é compensado por motoristas  normalmente gentis, portas que se abrem na altura do meio-fio e lugar para sentar destinados aos mais vulneráveis. 

Em compensação, as paradas de ônibus exigem mais tempo de caminhada entre o ponto e o local de destino. Aí é que a aventura se intensifica. 

O velho cocô de cachorro ainda é um componente frequente nas calçadas, cujo o tamanho muitas vezes não chega a 30 centímetros. Ter que se equilibrar nas muletas e desviar das lembranças deixadas pelos simpáticos cãezinhos parece fazer parte de uma gincana. 

Isso sem contar a modinha do patinette, uma febre na cidade. O aqui chamado “trottinette” pode ser pego em estações,  mas não precisa ser devolvido. Eu juro a vocês que eles são deixados no meio das calçadas. E no meio não é força de expressão. 

Outro obstáculo são as bicicletas. A turma das pedalas costuma bater no peito com orgulho de contribuir para a sustentabilidade, mas amarram suas magrelas aos postes das calçadas e impedem as pessoas de passarem pelos estreitos espaços, obrigando-as a descer e andar na rua.

Falando em ruas, atravessa-las é outra aventura. As faixas de pedestres muitas vezes são fechadas pelos carros (estou no Rio de Janeiro e não sei?) e os sinais verdes nunca são em tempo suficiente para os passos de cágado de quem tem dificuldade em andar. 

O esforço com as muletas deu fome ou sede? Ok para os cafés e restaurantes e seus grandes salões no térreo. Mas nem pense em ir ao banheiro, geralmente no subsolo e com acesso por escadas em caracol. 

No imaginário de Flaubert, o escritor francês responsável por imortalizar o verbo flanar como um dos maiores prazeres parisienses, certamente é preciso estar nas condições físicas perfeitas. 

E em meio às dificuldades em andar pela cidade, os devaneios vão sendo acentuados pela falta de mobilidade momentânea. Me vejo a indagar sem cessar “pernas, para que te quero? Pernas, pra que te quero? Pernas, pra que te quero?”.  Veio a resposta de súbito: quero pernas para praticar a caminhada contemplativa em Paris. Aquilo ao qual chamamos “flanar”.

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1 comentário

  1. Nossa! Parece que vc descreveu São Paulo. Com as calçadas estreitas, com postes , patinetes e bicicletas que agora estão ameaçando nos atropelar! Não se pode ser pedestre aqui. Somos uma ameaça à mobilidade urbana.
    Passei por uma fratura na perna no ano passado e por conta disso não pude flanar, tive que recorrer ao táxi pois aqui os ônibus tem um degrau alto, muitos motoristas não esperam ninguém sentar antes de partir e dirigem como loucos, dando brecadas que fazem as pessoas parecem gado no transporte público.