Enquanto as notícias de Paris mundo afora têm sido sobre as cheias do rio Sena, passeio sob o céu cinza vendo as inundações e, não sei por que, só penso em Samuel Becket. O dramaturgo era irlandês, mas radicou-se na França e morreu em Paris no ano de 1989. Ele escreveu uma daquelas obras-primas do chamado teatro do absurdo, que de absurdo só tem o fato de ser tão verdadeiro, como já afirmava outro dramaturgo da linha, Luigi Pirandello.
Tem uma peça de Becket que se chama “Esperando Godot”. A sinopse é simples: dois amigos sem eira nem beira esperam por um terceiro personagem chamado Godot. Mas Godot nunca aparece. E os dois personagens ocupam-se da vida – enquanto o grande objetivo é a espera do que está por vir.
O peso do vazio existencial é sustentado por esse aguardar. Porém, a vida e os acontecimentos corriqueiros estão ali. No dia a dia, por vezes sem sentido, da existência humana.
Como nas saias esvoaçantes dos desfiles da Semana de Moda. Na ausência de sorriso da blogueira influencer com milhões de seguidores. No ódio e na parcialidade dos defensores de políticos aparentemente em oposição, mas que trocam apertos de mão e favores nos bas fond. Na história de amor interrompida pela guerra. Da vida do filho levada pela bala perdida. Na liquidez das relações virtuais. Nos preços exorbitantes de animais de raça e fertilização in vitro, enquanto há tantos bichinhos e crianças à espera de adoção. Na morte do pai ou da mãe que, mesmo quando cumpre a ordem natural, nos atira na lona. Nas doenças incuráveis. Nas alas infantis dos hospitais. Na indústria de roupas explorando seres humanos vulneráveis. No consumismo desenfreado. Na obsessão pelo corpo magro a qualquer preço. No machismo, racismo, homofobia e na gordofobia. Nos que reclamam da vida quando têm casa, saúde, trabalho e três refeições quentes por dia.
Ou na despedida de quem veio a Paris te visitar, mas precisa voltar e que, juntando-se às chuvas ininterruptas de janeiro, deixou Paris triste dentro do frágil, e agora vazio, coração imigrante.
