Correndo atrás da cutia

Campo de Santana é o nome de um parque, no coração do Centro do Rio de Janeiro. Fica bem na Praça da República, cercado pelo Hospital Sousa Aguiar, pela casa do Marechal Deodoro da Fonseca e pela estação de trem principal da cidade, a Central do Brasil.

Trata-se de um belo parque e tinha tudo para ser o Jardim du Luxembourg carioca, pelas amplas alamedas cercadas de árvores, grama e …bichos!! Isso mesmo. A principal característica do Campo de Santana é ser um viveiro de cutias, patos, gatos.

Tenho uma relação afetiva muito forte com o Campo de Santana. Quando era criança, as manhãs de sábado eram ali ou na Quinta da Boa Vista. Meu pai colocava no carro eu, minha irmã e irmão mais velhos – e sempre mais um amiguinho ou amiguinha – e rumava em direção ao “Parque das Cutias”, como eu carinhosamente o chamava.

Ao chegar lá, meu pai sentava em um banquinho, abria o jornal e dizia “Andem, peguem uma cutia pra mim. Só vou embora quando um de vocês conseguir pegar uma cutia”. Pronto. Era a deixa para sairmos enlouquecidos atrás dos roedores, uma mistura de esquilo com capivara, que nos davam uma canseira danada e , óbvio, não conseguíamos alcançar.

De vez em quando, meu pai, gaiato que era, ainda dava uns incentivos nos chamando para mostrar as cutias “Olhem essa aqui, está mais fácil de pegar”. Corríamos na direção do bicho que, antes sequer de darmos o primeiro passo, ja dera no pé e se atocaiara em algum canto. Meu pai ria muito e voltava a ler o jornal.

Quando já estávamos exaustos, depois de horas de tentativa e algumas pausas para um suco ou um picolé, chegávamos até meu pai e dizíamos, derrotados, que não tínhamos conseguido. Ele nos consolava e dizia “Tá bom, vamos embora. Outro dia vocês conseguem”.

Hoje entendo com clareza que aquelas idas ao parque nada mais eram do que estratégia. Com três crianças dentro de um apartamento, seria impossível minha mãe, que é professora, dar conta de seu trabalho e estudos, além das eventuais tarefas domésticas. Meu pai, por consequência, jamais conseguiria ler o jornal do fim-de-semana sossegado em casa, com três filhos cheios de energia e alguns eventuais coleguinhas.

Naquelas manhãs, todos saíam satisfeitos. Meu pai lia o jornal todo. Nós, crianças, nos esbaldávamos atrás dos bichos impossíveis, acreditando que um dia conseguiríamos pegar pelo menos um. Minha mãe nos recebia de volta feliz: o único trabalho era mandar-nos para o banho, nos alimentar e depois curtir o restinho do sábado com três crianças para quem a expectativa era, no máximo, ouvir uma historinha na hora de dormir, depois de terem zerado a adrenalina a correrem atrás das cutias.

Outro ponto interessante é que meu pai, talvez instintivamente apenas, alimentou em nós a capacidade de sonhar e de acreditar que o sonho é possível.

Já adulta, passava todos os dias em frente ao Campo de Santana no trajeto de casa para o trabalho. Infelizmente, lá virou ponto de prostituição e de roubos. Quase não há crianças brincando, exceto em visitas guiadas de algumas escolas. Mas o parque continua ali, com sua natureza exuberante no meio do caos urbano.

Como hoje é Dia dos Pais aqui na França, lembrei-me destas idas ao Campo de Santana com meu pai. Ele nos deixou poucos meses depois de eu chegar a Paris. Sinto muitas saudades e, ao ver os pais com seus filhos nos parques por aqui, penso em como meu pai, um homem da geração 1960-1970, era um pai à frente de seu tempo.

Enquanto nas famílias dificilmente os homens se ocupavam das crianças, meu pai nos levava à praia, para passear, na escola, nas festinhas e até nas reuniões de escola ele comparecia, revezando com minha mãe que também trabalhava. Até fantasia de Carnaval ele já costurou para os filhos.

Olhando o verde desta fim de primavera parisiense, lembrei-me bem de um dia, dentro do ônibus que me lavava à Redação do jornal onde trabalhava. Caía uma chuva torrencial no Rio. O trânsito lento obrigou o ônibus a parar durante muito tempo diante das grades do parque. Avistei um cutia que se abrigava da chuva, quase dentro de um tronco de árvore, daqueles bem sulcados.

Ela devia estar sentindo frio e só mexia o nariz e as orelhas. Tinha uma aparência tão frágil que logo pensei “Acho que essa eu conseguiria pegar”…depois me dei conta e ri. “Até hoje ainda penso em pegar uma cutia?”

Logo veio o estalo: na verdade, a cutia nada mais é do que o símbolo da perseverança. Obrigada Seu Antônio, por ter plantado em mim a semente de seguir acreditando que vai dar para pegar a cutia.

(Essa crônica foi publicada originalmente há 10 anos, em um blog anterior que se chamava Quero Ser Joyce Pascowitch. Atualizei-a em homenagem a meu pai hoje)

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