E se nada der certo…

Estava eu ‘folheando’ as páginas da web brasileira e não consegui ficar incólume à notícia de uma escola de classe média-alta ter promovido o dia do “E se nada der certo?”. Os alunos foram vestidos de empregadas domésticas, lixeiros, porteiros e atendentes de lanchonete, entre outras profissões.  E o que euzinha, aqui de Paris, tenho a dizer sobre um episódio, talvez isolado, no remoto país em efervescente crise de valores de onde vim?
Primeiro de tudo, não considero o fato como algo isolado. Essa associação de ‘looser’ (perdedor) a quem está exercendo funções profissionais  do chamado, pejorativamente, “subemprego” é algo comum a todo o mundo capitalista. Mais por uma ideia de status do que necessariamente econômica.
Porque muitas das profissões consideradas reconhecidas, para as quais precisamos de muitos anos de estudos e prática para exercê-las, nem sempre nos dão a remuneração adequada a uma sobrevivência com dignidade. Posso falar como jornalista, por exemplo. Além de o mercado de trabalho não mais nos absorver, a remuneração oferecida tem sido cada vez mais vergonhosa.
Não sou hipócrita. Apesar de conhecer porteiros e empregadas e motoristas e tantos outros profissionais que criaram filhos que hoje são doutores, é claro que quando se pergunta a uma criança o que ela quer ser quando crescer, dificilmente vamos ouvi-la dizer ‘quero ser lixeiro’. As profissões médias ou as profissões para as quais não se exige diploma são comumente dissociadas dos sonhos.
Também não é sexy ou empolgante. Numa paquera ou quando se conhece alguém novo num evento social qualquer, dizer ‘sou jornalista’ causa mais impacto do que ‘sou atendente do McDonald’s’. Sejam elas de todas as classes sócio-econômicas, isso acontece.
Mas o que não acontece e nem deveria acontecer é apontar profissões dignas e honestas como se fossem a última saída ‘ se nada der certo’. Afinal, o que é dar certo? Poucos pensam que são estas profissões que sustentam os sonhos daqueles que não vêm de famílias com condições financeiras para se escorarem.
Quem não se  tem pai ou mãe ricos, quando não se  recebeu apartamento na Zona Sul de herança, quando não se tem pensão de pai juiz ou militar, provavelmente não vai dar para fazer o mestrado sonhado, ou o curso universitário difícil e muito menos tentar viver fora do Brasil. Exceto quem vai fazer destas profissões consideradas ‘menores’ o trampolim para atingir suas metas de vida.
Eu mesma já fui atendente de call center no Brasil. No turno da noite, na universidade particular onde estudava,  havia uma horda de futuros jornalistas bancários, atendentes, recepcionistas de hotel, vendedores de lojas e tantas outras profissões. Aqui na França, cheguei disposta a fazer qualquer coisa e meu primeiro trabalho foi como babá.
Até hoje tenho aqui um trabalho de pesquisa sem muito glamour. Ligo para países lusofônicos para saber se os clientes estão satisfeitos com determinados produtos. Trabalho por projeto, me pagam honestamente, ganho benefícios e o job não me atrapalha com a profissão escolhida. Aliás, embora status profissional aqui seja algo também importante nas classes mais altas, ainda não vemos tamanho preconceito.
Poucos se envergonham de serem garçom, empregada doméstica  ou porteiro. Até porque esses profissionais têm casa, carro, jantam no mesmo restaurante que eu e você e ainda viajam mais pela Europa do que eu, sempre presa aos trabalhos e prazos  enlouquecedores da vida de jornalista freelancer.
Inclusive, como aqui era de praxe os pais ‘expulsarem’ os filhos de casa a partir dos 18 anos, muitos homens e mulheres de minha geração complementaram a renda com essas profissões do ‘e se nada der certo’. E eu digo ‘era’ porque outro dia li uma matéria que falava da nova geração que fica até 30 anos na casa dos pais.
A desculpa foi a crise de 2008 e os pais passaram a fazer obras em seus imensos apartamentos, deixando um quarto com cara de estúdio para os filhões. Uma pena essa mudança na sociedade francesa. Vejo já a meu redor esses exemplos na prática.
E com casa, comida e ainda um estúdio separado da casa dos pais, sem precisar pagar nada, é bem provável que a França crie sua geração canguru, com mais dificuldade de se virar por aí.
Lamento. Pois se algo não deu certo, a meu ver, é uma geração acomodada, cheia dos clichês, reclamona, exigente como se o mundo tivesse sido feito para ela. E que ainda aponta o dedo para trabalhadores e os classifica como  ‘gente que não deu certo’.

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3 comentários

  1. E que valores esta escola passa a seus alunos? O menosprezo pelos trabalhadores HONESTOS que exercem serviços de base! Quanto preconceito… Enquanto isto, aqui na França, inúmeros estudantes de Direito, Engenharia e afins trabalham como garçons, babysitters, animadores de colônias de férias para crianças pobres e organizadores de filas na Eurodisney só para citar os mais comuns, durante as férias de verão! Que mentalidade mesquinha.

  2. Gostei desse texto. Concordo, acho das geração muitíssimo acomodada.