Desordem

« Ah, se já perdemos a noção da hora »…assim começa a canção “Eu te amo”, se não me engano, composta com letra de Chico Buarque e música da Tom Jobim. 

Tenho uma mente musical. Penso em músicas em situações diversas. Sejam as trágicas como as cômicas. Seja em momentos dramáticos ou serenos. A playlist do meu cérebro é vasta a diversificada. Assim, na trilha sonora da minha vida já passou de forró a Chopin. De “Pula a fogueira” a Beatles.

Em geral, lembrar inesperadamente de músicas no dia a dia me dá um certo prazer, exceto quando são músicas tristes ou com letras pesadas em relação ao que acredito. Em que acredito? Em mantras. A palavra de origem sânscrita significa, a grosso modo, ferramenta para guiar a vida. Eu considero mantra as nossas repetições mentais, que têm o poder de transformarem-se em realidade.

Sim, certas canções vêm à mente meio fora de hora. Grudam. Martelam. Invadem os pensamentos com presenças quase incontroláveis. E como é desafiador apertar o botão ‘stop’! 

Doutrinei meu cérebro a recorrer a uma frase de Macbeth, peça escrita pelo inglês maior William Shakespeare. Na tragédia elizabetana, o rei da Escócia, atormentado pela culpa em relação ao crime cometido  para chegar ao trono, repete como um mantra a seguinte frase: “afastai os pensamentos imperfeitos”. 

Pego emprestado a fala de Macbeth para afastar os pensamentos nocivos que infestam nossa massa cinzenta como ratos, correndo sem controle, nos assustando e empesteando.

E se funciona para pensamentos, uso a mesma frase para afastar também as músicas tóxicas. Eu até reconheço a beleza de um Lupicínio, mas estou numa altura da vida na qual não faz sentido sair cantarolando coisas do tipo “felicidade foi-se embora” ou “meu Deus! como eu sou infeliz”. E nem vou falar de outras tantas música ruins de letra e melodia…

Mas o bom mesmo é quando nossa mente toca a música certa no momento preciso. Como aconteceu ontem, ao acompanhar uma amiga que mora em Paris há 3 anos e nunca tinha ido na famosa “parede do Eu te amo” da cidade. 

O monumento, localizado no coração do bairro de Montmartre, consiste em um muro onde está escrita a expressão ‘eu te amo’ em todas as línguas do mundo. Até em libras (vulgarmente conhecida como língua de surdos-mudos), com direito a desenho das mãos em movimento, para darem o significado.

Ao chegar lá, como de praxe, meu órgão localizado na parte mais alta do meu corpo apertou o botão de play. E, de súbito, veio a canção citada no início da crônica. Enquanto a letra e melodia tocavam sem controle, dei-me conta de um detalhe. 

A música chama-se “Eu te amo” e conta a história de um amor em fase de término.  Mas a cereja do bolo é que, muito provavelmente por genialidade dos compositores, ‘eu te amo’ só é dito no título. O verbo amar aparece uma única vez, conjugado na primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo.

E enquanto a canção entoava como fundo musical nos altos falantes da minha caixa craniana, meus olhos perdiam-se na bagunça de signos linguísticos em tinta branca sobre azulejos azul-marinho. 

A visão vagueia tentando adivinhar as línguas até chegar a uma parte no alto esquerdo, do ponto turístico. Há lá um desenho em grafite, típico da chamada ‘street art’. Ou é novo, ou eu jamais vi. Na obra, temos a personagem Gilda, vivida no cinema dos anos 1940/50 pela estonteante Rita Hayworth, a nós dizer: «Amar é desordem, então, amemos”. 

Na música de Chico e Tom a palavra desordem também aparece.

Eu penso: coincidências não existem.

Enquanto o mundo está em desordem, com fronteiras fechadas aos amores de alhures, Paris é o mundo. E se o mundo atualmente é desordem e Paris é o mundo, logo, Paris é desordem. Então, amemos-lhe! 

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