Toque de recolher

Um amigo faz uma postagem angustiada nas redes sociais após saber sobre o reconfinamento na França (e em outros países da Europa). Ao tentar ensaiar responder-lhe, saiu esta crônica.

Previ o que aconteceria. Pode perguntar aos amigos mais íntimos. Quando « desconfinamos » em maio, cantei a seguinte pedra: « essa francesada vai se acabar no verão, em setembro recomeçam as aulas, os jovens e crianças contaminados sem sintoma vão contaminar geral, a segunda onda vai chegar mais forte, junto com o frio e doenças do outono. E em outubro estaremos voltando ao confinamento ». Feito. 

Sou vidente? Não, apenas prever isso era mole para quem estava acompanhando as informações e ouvindo todo tipo de fonte desde o início do primeiro caso de COVID-19. As escolas e creches continuam abertas e isso é para ajudar os pais a trabalharem de casa. Decisão puramente econômica. Mas em termos sanitários, é um problema e o ministro da educação já disse que vai acompanhar se será viável manter a educação presencial. A academia científica francesa, super respeitada aqui, disse claramente : perdemos o controle da circulação do vírus. 

O mundo perdeu há muito tempo. O que a gente já deveria ter feito era assumir que isso NÃO vai acabar. Nem com vacina, nem lockdown e nem nada. Porque trata-se de uma doença cuja contaminação está ligada ao comportamento. E, convenhamos, no quesito comportamento a humanidade não tem tirado as melhores notas.

Somos, e a pandemia só confirma isso, de um lado miseráveis e do outro um bando de mimados, querendo viajar, abraçar, transar, se aglomerar em estádios ou shows, frequentar a casa uns dos outros, usar máscara no nariz, pegar no celular e comer sem lavar as mãos. Fazer selfie na Torre Eiffel, clicar os pratos nos restaurantes, tomar chopp na Dias Ferreira ou lotar as praias. Ir ao cinema. Ao teatro. 

E quando digo « somos » é porque me incluo também. Por isso não julgo ninguém. Eu me arrisco pra beijar a boca do bofe que, estava confinado longe de mim, da mesma forma que alguém se arrisca pra ir à festa ou abraçar os netos. Cada um conhece seus limites. Sem contar os trabalhadores que são obrigados a se expor.

E aí a gente se deprime ou explode em raiva quando um dos presidentes franceses mais arrogantes de todos os tempos diz  em um tom surpreendentemente humilde: « assumo diante do povo francês que, sim, por vezes demoro ou tomo decisões que não são as melhores, mas a situação é difícil. Requer estudos, ouvir especialistas, ouvir representantes da sociedade civil. Estamos todos aprendendo sobre essa doença ». 

E se até o chefe de Estado de uma das 6 maiores economias do planeta baixou a bola, eu me pergunto TODO santo dia o que essa gente reclamona tem de tão fundamental para fazer da vida deles que não pode ser adiado ou descartado ou modificado? Afinal, do que nos ressentimos em relação às limitações impostas pela pandemia? 

Constatei que raramente é de não poder dar continuidade a uma pesquisa científica, nem de estar impedido de realizar uma ajuda humanitária. É, constantemente, algo que iria encher o próprio bolso, ou o próprio ego, ou compensar a própria carência. Ou seja, tudo fruto de pobreza de espírito mesmo. 

E, antes do mimimi (que recentemente descobri que  vem do inglês “me me me “- gente que só vê vida dentro do próprio umbigo) já vou logo esclarecendo: excluo aqui quem está lutando pela sobrevivência. Estar angustiado e reclamar preocupado em pagar  o aluguel com a verba de entregador de aplicativo é muito diferente de estar arrasado porque pela primeira vez não vai fazer a viagem anual a Paris. Ou que não vai ver a família no Natal.

Estamos pobres espiritualmente. E eu falo no sentido de “esprit”, que em francês quer dizer mente (de mental, não do verbo mentir). Mente na língua de Molière é definido lindamente como a sede dos nossos pensamentos e ideias (sede no sentido de lugar principal e não de necessidade de hidratação). 

A Europa está atualmente ou em toque de recolher ou en reconfinamento. As Américas, puxadas por Brasil e EUA, contribuem para o aumento dos números de casos de covid. Uns  são contra o confinamento outros a favor. E fazem guerra uns com os outros. Uns acham um absurdo a praia lotada, mas não acham nada demais uma aglomeraçãozinha em família na casa de praia no fim de semana. Uns acreditam na vacina, outros não tomam mais. 

Criamos cizânias entre nós, quando é apenas tempo de atravessarmos. Façamos um toque de recolher em nossas próprias verdades e em nossas tribunais impiedosos. Julguemos menos, toleremos mais. E nos comportemos melhor. 

Porque se não a travessia não será feita e nunca chegaremos do lado do tal “quando tudo isso acabar”. Não se iludam: o  “isso” será sempre da forma como lidamos com ele. E talvez o mais fundamental: reconfinemos  a angústia deste momento, sem deixar dominar-se por ela. Afinal, quem não está angustiado ou é psicopata, ou é buda ou apenas escolheu o caminho da fuga. 

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1 comentário

  1. Sou um homem de números, por isso me embriago facilmente em leituras, de pessoas como você, Ana Paula, que de maneira soberba me faz ir ingerindo cada frase, de suas postagens e opiniões, como se fosse um delicioso licor.
    Amei e estou aqui também ansioso e na dúvida constante, pois como professor, vivo a angústia da incerteza dos passos futuros. Grande beijo.