O amor na casa de Alá

Era um domingo fresco de verão, meu quarto mês como moradora de Paris. O namorado da ocasião me diz entusiasmado: “vou te levar a um lugar que vais amar”. 

Eu tenho muita simpatia com o verbo amar em francês. Apesar de uma dificuldade imensa em pronunciá-lo (juro: há quem entenda “jamais” quando eu digo “j’aime”. Freud explica). Mas voltando ao ponto, enquanto nas outras línguas que conheço diferencia-se gostar de amar, na França todo mundo ama.

Por exemplo, o “like” das redes sociais por aqui é “j’aime”. Um grau acima é “j’adore” (eu adoro).  Gostar por aqui, e isso acho bem engraçado, é dito da seguinte forma “j’aime bien” (o que, ao pé da letra, seria “eu te amo bem”).

Na usage da língua francesa, cheia das nuances, isso pode causar problema. Um dia numa discussão com o namorado disse-lhe  “eu sei que você gosta de mim” (eu disse “je sais que tu m’aimes bien”). E ele me cortou:  “não, eu não gosto de você”. Fiquei chocada, mas o moço manda na sequência “je t’aime”, assim, sem o “bien”, que ao contrário da tendência brasileira em interpretar o advérbio com algo a mais, o “bien” do verbo francês enfraquece o amor

Elucubrações linguísticas à parte, chego ao local com o qual o cavalheiro queria surpreender-me. Antes de dobrarmos a esquina, porém, eu já matara a charada: “ah! Vamos à casa de chá da mesquita de Paris? Eu conheço e adoro!”.

Sentamo-nos a uma das belas mesas em tábua de mosaico. Ao nosso lado, mas separadas por uma mesa maior, ainda vazia, estavam duas mulheres com seu bebê. Casal homoafetivo em Paris não é nenhum extraterrestre, embora haja preconceitos, como em todo lugar, infelizmente. 

Mas ali tudo era harmonia. Eu e o companheiro já estávamos no clássico chá e provando o terceiro das tantas opções de doces “árabes” do local, (coloco árabe porque é como nós no Brasil chamamos a culinária típica dos países do Norte da África). Delícias que deveriam entrar na lista das 7 maravilhas do mundo.

Eis que a tal mesa maior começa a ser ocupada. Uma bela moça de cabelos longos  e pele escura, um moço muito branco de cabelos louros, um senhor vestido com uma túnica e uma senhora portando um véu que cobria sua cabeça.

A moça falava em francês com o moço louro, e inglês com o senhor mais velho, que por sua vez falava em outra língua com a senhora portando véu. Eu, que não resisto a observar a fauna humana, percebi tratar-se de um casal jovem, formado por nacionalidades distintas, em companhia dos pais da moça. 

Aquela tradução simultânea no meio-campo do diálogo me era muito familiar, acho que só entende quem já teve relações amorosas com estrangeiros e fez apresentação à família.

Pois bem. Estava eu tentando disfarçar minha curiosidade, quando o bebê com duas mães se apaixona pela senhora da véu. Isso mesmo. Quem já conviveu com bebês simpáticos sabe do que estou falando. O menino olhava para aquela senhora e se abria em gargalhadas sedutoras. Ela, falando em uma língua irreconhecível para os adultos ao redor, só conseguia arrancar mais gargalhadas do bebê.

Num gesto ousado, a senhora de véu abre seus braços, oferecendo seu colo para a criança que, sem hesitar, se joga do colo da mãe para os braços daquela desconhecida. 

Todos ao redor sorriem. Um uníssono de “Ownnn” pôde ser ouvido. Olho para meu companheiro de mesa. Percebo emoção em seus olhos, enquanto os meus ja marejavam.  Só tive força para perguntar :”você viu isso?”. Ele,  católico, alguém louro de olhos verdes e que já foi casado com uma mulher negra, com quem tem duas lindas filhas mestiças, me aponta a minarete da Mesquita, possível de ser avistada no jardim: “estamos ao lado da casa de Alá. E ele está só nos lembrando o que  é o amor”.

Hoje, seis anos depois da personificação do amor em forma de comportamento humano, decidi voltar à casa de chá, meu primeiro programa de socialização após o confinamento. 

Movida pela vontade de reencontrar o amor em sua essência mais pura, em tempos de coronavírus…e comer os maravilhosos doces abençoados por Alá!

(Em tempo: fiz uma foto da cena no dia, mas não a publico agora por não ter pedido autorização aos fotografados).

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