O cheiro do croissant e o bicho-carpinteiro

Por Ana Paula Cardoso 

Final de janeiro de 2021. Aqui estou eu novamente encarando uma jornada acadêmica num país que não é meu. Minha vó diria que tenho bicho-carpinteiro. O ditado popular ilustra de forma bonitinha essa mania de estarmos sempre em reconstrução.

Eu pesquisei o termo. 

Embora haja quem diga que o bicho-carpinteiro nem exista, e a expressão teria vindo de uma deformação do modo de falar a frase: « ter bicho no corpo inteiro », não há nenhuma comprovação sobre essa lenda. Para começo de conversa, bicho-carpinteiro existe.

Está lá no dicionário Houaiss a prova: trata-se do « nome popular e genérico de diversas espécies de besouros, especialmente das famílias dos buprestídeos e cerambicídeos que, durante o estágio de larvas, brocam troncos e cascas de árvores”.

Ou seja, os estudos linguísticos mostram que “ter ou estar com bicho-carpinteiro” é uma expressão usada como metáfora para ilustrar uma pessoa irrequieta que, como as árvores sob a casca, tivesse sob a pele as larvas desses insetos a se remexerem constantemente, fazendo cócegas e não as deixando sossegadas.

Eu não sossego. Talvez por deformação profissional de jornalista, talvez  pelo diploma de filosofia ou talvez pela alma metida a artista. Eu busco. Mas a busca, entendam bem, não é por nenhum objetivo final. A busca em si mesma dá uma graça danada à vida.

Sonho com um dia uma casa numa colina,  de onde eu terei a visão panorâmica do mar Egeu? Não nego. Mas talvez passe lá alguns momentos antes de a inquietude me raptar novamente.

Enquanto a casinha na Grécia não vem, sigo pelas ruas de Paris rumo ao primeiro dia de aula de um novo mestrado. Ao passar em frente à padaria, sinto cheiro de croissant. Meu coração enche-se de ternura. Poucas vezes neste ano de pandemia tive a oportunidade de sentir esse odor tão agradável e tão típico da minha cidade atual.

No fim do dia de aula, a secretária chega com uma bolsa cheia de livros para cada aluno. Entre os acadêmicos, os de códigos jurídicos, ou de sociologia do trabalho, acho um livrinho menor, 300 páginas, de capa laranja e um singelo título: “A influência do cheiro do croissant na bondade humana”. Pensei « não pode ser verdade, é muita coincidência ».

Imediatamente lembrei de outro ditado popular: coincidências não existem.

Voltando para casa, apressada para não furar o horário do toque de recolher, compro um croissant quentinho. Tiro a máscara no meio da calçada para comê-lo. Um moço passa e me diz « bon appétit! »

Penso na vida. Penso nela como um conjuntinho de desassossegos, deliciosamente rompidos pelos encontros fortuitos de circunstâncias relacionadas entre si.

Eis a questão: coincidências de fato não existem? Ou seria ao contrário? Seria a coincidência a única coisa que realmente existe – ou ao menos a única coisa que faça algum sentido – nessa nossa jornada existencial cheia de dilemas éticos, morais e biológicos?

Eis a questão. Coincidências de fato não existem ou seriam a única coisa que realmente existe – ou ao menos a única coisa que faça algum sentido –  nesta nossa jornada existencial cheia de dilemas éticos, morais e biológicos?

Meu cérebro está irrequieto como nunca. Ainda no metrô, busco uma foto do bicho-carpinteiro no Google. Acho sua morfologia parecida com o desenho do croissant que ilustra a capa do livro. “Coincidência”. E dou sorriso escondido debaixo da máscara.

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